domingo, janeiro 29, 2006

Azul IV


Foto: Ian Britton
http://www.freefoto.com

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Limpar a casa por dentro...

Fundada oficialmente a 24 de Outubro de 1945 em São Francisco, Califórnia, finalizada a Segunda Guerra Mundial, a ONU parecia, à primeira vista,ser a instituição internacional, por excelência, capaz de assegurar a equidade e justiça em todo o mundo e fornecer os princípios gerais para a regulamentação das relações humanas à escala global. Com efeito, uma das suas acções mais destacáveis foi a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, dando seguimento aos ideais emergentes da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
http://www.unhchr.ch/udhr/lang/por.htm
Estava-se no rescaldo de uma Guerra Mundial, das bombas de Hiroshima e Nagasaki, do Holocausto Nazi, da destruição de Pearl Harbour e das mais importantes cidades europeias. Renascia-se das cinzas para um mundo novo e o Homem parecia empenhado em esquecer a violência, a humilhação, o sofrimento, em prol de uma Terra mais justa, mais habitável...
Mas foi sol de pouca dura. O mundo dividiu-se em dois blocos e o início da era nuclear desencadeou a corrida ao armamento de intimidação. A Guerra, agora, fazia-se entre gabinetes oficiais, corredores secretos e satélites espiões, com as flutuações do preço do crude em pano de fundo, ou lá longe, num Oriente que teimava em desafiar as potências beligerantes, ou era por estas manipulado. As missões de paz dos capacetes azuis surgiram, nesta altura, como um meio de resolver conflitos entre os Estados mediante o envio de pessoal militar desarmado ou portador de armas leves de vários países, sob o comando da ONU, e sua distribuição pelas forças armadas das partes anteriormente em conflito. Entretanto, "caíu" o muro de Berlim e o mundo respirou de alívio, pois a ameaça nuclear parecia afastar-se do horizonte e a "guerra das estrelas" parecia ser definitivamente arrumada na gaveta. Com o fim da Guerra Fria, desencadeou-se uma mudança radical nas atividades de manutenção da paz da ONU, que se tornaram mais complexas e de maior dimensão, tendo sido criado, em 1992,o Departamento de Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas, com o objetivo de apoiar a procura crescente de atividades de manutenção da paz complexas. A escalada de conflitos sangrentos em África, na América Latina, na Europa, em Timor, no Médio Oriente e outros pontos do globo, da segunda metade do século XX até hoje depressa torna insuficientes os meios humanos e materiais da ONU para assegurar as suas operações de paz e cria a necessidade de uma maior especialização dos serviços prestados por esta instituição, que vai absorvendo, cada vez mais quadros técnicos, meios logísticos, capitais, a fim de implementar no mundo os famigerados Direitos Humanos. O Conselho de Segurança, e os seus 15 Estados-Membros cria e define as missões de manutenção da paz, atribuindo a cada missão um mandato. No entanto, se qualquer um dos cinco membros permanentes - China, França, Federação Russa, Reino Unido ou Estados Unidos - votar contra a proposta, esta é rejeitada. Logo aqui se percebem as dificuldades desta instituição em fazer aprovar uma decisão e implementá-la no terreno.
Aliás, a sujeição da ONU à prepotência de um dos seus Estados-Membros, ficou bem patente na "Nova Ordem Mundial" ansiada pelos EUA após o atentado de 11 de Setembro de 2001 às torres gémeas de Nova Yorque. Contra o fundamentalismo islâmico, e os seus bombistas suicidas, ergue-se o fundamentalismo liberal, com as suas "bombas inteligentes" e as democracias artificiais. A ONU assiste, impotente. Como se isso não bastasse para revelar as fragilidades actuais do projecto de 1945, um pouco por todo o lado, as actuações dos soldados integrados nas missões de paz da ONU, bem como as de alguns quadros administrativos, deixam muito a desejar quanto à formação do pessoal em matéria de ética e respeito pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. A par de casos bem sucedidos, surgem notícias preocupantes, como as dos abusos sexuais cometidos por capacetes azuis no Congo, Libéria, Costa do Marfim, Haiti e Burundi, tendo conduzido, neste último país, ao despedimento de soldados.
Aos poucos, aqui e ali, começa a abrir-se uma fractura entre a imagem oficial da instituição e a realidade no terreno. A par das declarações de eficácia em termos de custos, "A ONU gasta menos, por ano, na manutenção da paz a nível mundial do que a cidade de Nova York gasta nos orçamentos anuais dos seus bombeiros e da sua polícia." , que se podem ler no Site oficial, surgem notícias, como as desta Quinta-Feira, (26/1/2006), no Público:"Uma investigação interna das Nações Unidas feita ao departamento que gere as operações internacionais de manutenção de paz recolheu extensas provas de má gestão e fraude em vários programas dos capacetes azuis, o que já levou à suspensão de oito responsáveis da organização [...] os investigadores detectaram casos de desperdício generalizado de fundos, inflacção de preços e a suspeita de que funcionários da ONU conspiraram com fornecedores para a atribuição de contratos em diversos países onde a ONU mantém operações de manutenção de paz, incluindo Timor-Leste." . Com efeito, quem passou por Timor-Leste em trabalho, nos últimos anos, pôde verificar como, apesar do estado generalizado de pobreza da população, os preços dos serviços e bens essenciais de consumo sofrem, em Dili, uma inflacção galopante, que começou com a presença da UNTAED e continua. Com a agravante de, após a oficialização da independência, se terem retirado equipamentos técnicos indispensáveis, como geradores - em hospitais e outras instituições-, jipes e computadores, comprados para aquela missão específica de reconstrução de Timor, com o dinheiro dos países que contribuíram para a causa. E Timor, neste aspecto, não constitui caso único. Tal como um polvo que cresce demais e já não tem força para controlar as extremidades, assim a ONU, instituição criada com tão bons princípios éticos para servir causas tão nobres como a Humanidade, padece de falta de força para controlar o comportamento dos seus quadros intermédios e funcionários que, em tempo de crise generalizada e de decadência do modelo civilizacional que nos habituámos a conhecer, se candidatam às vagas de recrutamento de pessoal mais para ter um bom emprego do que por motivações realmente humanitárias.
"O orçamento da manutenção da paz proposto para o ano 2004-2005" era "de 2,68 bilhões de dólares mas se novas missões" fossem criadas, poderia "haver um acréscimo de mais 2 bilhões.". Não consegui saber se o orçamento para 2005-2006 é semelhante ou superior. Mas para que esse orçamento não "estoure", com gastos excessivos com o pessoal ou com a logística ou com eventuais desvios de fundos, e sirva o fim a que realmente se destina, está na altura da ONU começar a fazer uma reciclagem séria do seu pessoal e limpar a casa por dentro...

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Terá mudado alguma coisa?

Os estudos estão feitos. As denúncias também. Resta saber o que muda, nas relações entre os países ditos "desenvolvidos" e os outros, em função do saber acumulado que os quilómetros de papel dos relatórios produzidos quer pela ONU, quer pelos observatórios internacionais, veiculam ano após ano, para resolver, de forma eficaz, os problemas detectados... A mim, parece-me que tais instituições absorvem, para o funcionamento da sua máquina administrativa, mais verba do que a que, de facto, disponibilizam. Para a implementação de cada projecto no terreno, é comum gastar-se mais dinheiro na logística e no pagamento aos especialistas, do que na ajuda efectiva às populações-alvo... O que acaba por ser uma "boa saída profissional" para os funcionários envolvidos, com garantias de salários chorudos e uma reforma muito superior à que aufeririam se estivessem nos seus países a desempenhar funções idênticas. Deste modo, se vai desvirtuando alegremente o papel da ONU e de qualquer campanha de solidariedade internacional. O caso de Timor é, também a esse nível, emblemático, tal como o de outros tantos,referidos neste artigo:

Setembro 2004

Ajuda que espolia

David Sogge *

Le Monde Diplomatique – Edição Brasileira

A ajuda pública internacional tornou-se uma enorme indústria: o seu facturamento anual ultrapassa 60 biliões de euros, envolvendo, directa ou indirectamente, mais de 500 mil pessoas. Porém, mais do que sobre o seu montante [1], o debate deve concentrar¬ se na democratização do sistema de ajuda. Na realidade, este veicula permanentemente ideias sobre o desenvolvimento e representa a matriz das relações entre países ricos e países pobres. E, se doadores e beneficiários enfatizam as suas qualidades, pelo menos em público, ela não deixa de ter zonas nebulosas. É um estranho paradoxo: nos países em que desempenha um papel importante, o orgulho e a ambição cederam lugar à dependência e à deferência; a pobreza e as desigualdades aumentaram e prevalece a insegurança. A República Democrática do Congo, a Serra Leoa, o Haiti ou a Guiné Bissau, por exemplo, que beneficiaram de uma ajuda em grande escala, são Estados falidos.
No entanto, a ajuda internacional foi construída historicamente em outras bases. O sucesso do plano Marshall, depois da II Guerra mundial, foi emblemático. Lançado pelos Estados Unidos, a sua gestão foi confiada aos europeus, e Washington não pedia aos países beneficiários que renunciassem à protecção das suas indústrias, que desregulamentassem os seus mercados financeiros, nem que acertassem sem demora as suas dívidas [2]. E se o plano Marshall teve sucesso, foi precisamente porque, de inspiração keynesiana, era destinado a revitalizar o capitalismo europeu por intermédio de uma regulação pública e de investimentos sociais.
PROBLEMA E SOLUÇÃO
Mas, desde a década de 50, opções ideológicas questionáveis acompanharam a implantação da ajuda na África, na América do Sul ou na Europa do Leste. Determinados economistas consideravam as desigualdades sociais como inevitáveis e até necessárias ao crescimento [3]. A ideia de redistribuir a terra ou a renda podia, portanto, ser descartada como irrealizável ou decididamente estúpida. Actualmente, esse velho paradigma revela as suas fragilidades. Pesquisadores sugerem que as desigualdades constituem, na realidade, um obstáculo ao crescimento e à luta contra a miséria [4], pois a ajuda esbarra sistematicamente no ultraliberalismo e na austeridade que as terapias de choque impõem aos simples cidadãos, enquanto um generoso acesso é garantido a empresários improvisados. Na ausência de controles públicos e de mecanismos de responsabilidade, as sociedades ocidentais e uma casta de oligarcas mafiosos locais tiram proveito dos programas de ajuda, como na ex União Soviética.
Alguns consideram que os criadores da ajuda não devem ser censurados. Ao contrário, para Joseph Stiglitz, prémio Nobel de economia, o procedimento deles equivale a «usar um lança-chamas para retirar a pintura gasta de uma casa e em seguida lamentar-se por não poder voltar a pintá-la, com o pretexto de que a casa está reduzida a cinzas» [5].
A redução da pobreza só se tornou a razão de ser oficial da ajuda internacional no final da década de 90. No entanto, como fora criada para atingir paralelamente outros objectivos – a luta contra o comunismo e a abertura dos mercados aos produtos e aos investimentos ocidentais –, pode-se duvidar da realidade dessa mudança de estratégia. É verdade que a ajuda, como catalisador de uma dinâmica de desenvolvimento, pode ter efeitos emancipadores: campanhas de vacinação e reforço dos sistemas públicos de saúde na Ásia do Sul e em certos países da África; apoio ao movimento anti-apartheid; luta contra os grandes proprietários de terras em Taiwan etc. Por outro lado, quando é guiada por uma espécie de leninismo do mercado (imposição de um modelo unívoco e desigual de política económica em favor de uma propaganda “orweliana”), a ajuda torna-se tanto um problema quanto uma solução. Na década de 70, por exemplo, a desertificação na África saheliana e sub-saheliana foi atribuída às populações das regiões de bosques e das pastagens, acusadas de imprevidência e de má gestão. Mas tais acusações tinham pouco a ver com a realidade e eram apenas pretextos para privar as populações da posse do seu meio ambiente e valorizar projectos tecnocráticos de ajuda.
AJUDA AOS RICOS
A ajuda ao desenvolvimento está recheada de ambiguidades. Para além das declarações, o dever de dar acoberta um gémeo inseparável e muito maior: o desejo de tomar. As transferências de fundos dos ricos para os pobres são bem menores do que os dados oficiais deixam perceber. A maior parte das quantias dadas ou emprestadas é gasta nos países doadores, ou para eles retorna: juros da dívida [6], fuga de capitais, remessas ilícitas de lucros, fuga de cérebros, compra de bens e de material... Em 2001, por exemplo, 29 biliões de dólares de subvenção foram concedidos aos países em vias de desenvolvimento, enquanto 138 biliões de dólares voltavam para os países credores a título de pagamento da dívida. Do economista Joseph Stiglitz ao investidor George Soros, todos estão de acordo em dizer que são os pobres que ajudam os ricos.
Se as preocupações mercantis e os interesses geopolíticos sempre afloraram nos discursos, nem sempre é fácil fazer aparecer a verdadeira hierarquia das motivações, de tanto que as elites aprenderam a mudar de vocabulário sem mudar de práticas: “crescimento equilibrado”, “abertura dos mercados”, “satisfação das necessidades básicas”, “luta contra a pobreza”, etc. são as novas roupagens de uma mesma visão. A ajuda aparece como um teatro de sombras que distrai a atenção dos pontos verdadeiramente importantes. As guerras comandadas à distância contra regimes nacionalistas de esquerda ou contra plantadores de ópio ou de coca desorganizaram regiões que a ajuda deveria ajudar. O dumping praticado pelo Ocidente em benefício dos seus cereais, da sua carne e dos seus têxteis corroeu, se não reduziu a nada, os apoios dados às produções locais no âmbito da ajuda. Da mesma forma, os países pobres devem aumentar o seu capital humano graças às bolsas subvencionadas pela ajuda. No entanto, ao mesmo tempo, os países doadores desempregam activamente profissionais da saúde, engenheiros e profissionais de informática do hemisfério Sul. De três africanos que têm um diploma universitário, um trabalha fora da África.
FUNDAMENTALISMO LIBERAL
Mas é a participação da ajuda na imposição do fundamentalismo liberal que é a mãe de todas as incoerências; é da sua cumplicidade com uma escola de pensamento económico encantatório que nascem as contradições. Na América do Sul, na África e na ex-União Soviética os efeitos dessa visão política chamam-se pouco crescimento, exclusão social, empobrecimento dos serviços públicos e instabilidade política. Ora, são precisamente esses fenómenos que tiram a eficácia da ajuda. Na década de 70, por exemplo, as orientações políticas socializantes da Tanzânia seduziam os social¬ democratas suecos, que incentivaram o apoio ao sector público e à independência nacional. Mas, em meados da década de 80, a onda neoliberal e a exigência de coordenar a ajuda conduziram os suecos a deixar de apoiar a recusa, pela Tanzânia, do ajuste estrutural. A partir de então, a política de Estocolmo baseia¬ se no consenso de Washington.
O discurso sobre a ajuda usa termos como “participação cidadã” ou “controle local das políticas”. No entanto, a concepção da ajuda, a sua organização e a sua implantação continuam a ser prerrogativa de estrangeiros. E mesmo quando as agências ocidentais não estão na primeira linha, os seus representantes formados nos países do hemisfério Norte – os “Chicago boys”, na América Latina, a “Berkeley máfia”, na Indonésia, ou os “africagoboys” – são os promotores zelosos dos mesmos princípios, graças às posições estratégicas que ocupam no interior dos ministérios das finanças locais e dos bancos centrais.
Durante os últimos 25 anos, os mecanismos de ajuda não só contribuíram para enfraquecer as soberanias, mas também para deslegitimar o Estado e os poderes públicos. A gestão da ajuda mostra isso claramente: os doadores preferem tratar com empresas privadas, organizações não governamentais ou estruturas paralelas ad hoc, tais como as empresas de reforma e de desenvolvimento da África do Oeste.
ATAQUE À SOBERANIA
Essa atitude deixa os Estados fora da competição (mesmo que os melhores agentes públicos sejam frequentemente despedidos para gerir uma ajuda não fiscalizada) e impede qualquer controle democrático. As autoridades nacionais prestam mais contas aos doadores do que aos seus cidadãos. Em resumo, tanto o Estado como a própria noção de política pública são esvaziados de sentido. Em muitos países ajudados, viu¬ se a deterioração dos serviços básicos (educação, saúde). É uma realidade reconhecida, por exemplo, num relatório da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE) referente ao Mali, publicado em 2000. Segundo esse estudo, «a ajuda enfraquece as instituições nacionais», ao deixar de lado os sectores públicos. Além disso, é isenta de impostos e de taxas e «não leva em conta contribuições malianas ao desenvolvimento»; a OCDE enfatiza a contradição entre a importância nominal da ajuda (50 dólares por habitante durante 20 anos) e a estagnação e até a regressão do padrão de vida das classes médias e pobres nesse país, submetido, desde 1981, a planos de ajuste estrutural [7]. Por fim, as privatizações, em condições muitas vezes pouco transparentes, criaram uma classe de novos ricos ligados a interesses ocidentais e alimentaram uma forma de cinismo geral. A ordem pública foi fragilizada por inteiro.
Em meados da década de 90, os riscos de derrocada de certos países, o não respeito das condições da ajuda e as ameaças de não pagamento da dívida provocaram uma mudança de orientação. A “boa governança” tornou-se um dos critérios para obtenção da ajuda, tendo, como objectivo oficial, lutar contra a corrupção, tornar a gestão pública mais “transparente”, aumentar o esforço de fiscalização e permitir que vozes discordantes se fizessem ouvir na imprensa e na sociedade civil. Mas, se essas reformas são frequentemente necessárias, muitos vêem nelas apenas uma manobra para o prosseguimento das políticas de austeridade impopulares, de descrédito do poder público e enfatizam a continuidade ideológica dessa “reviravolta” [8]. Quais seriam, de facto, as motivações de pessoas encarregadas de promover a “governança”? Uma das heranças da ajuda é um vasto déficit democrático que mantém no poder tecnocratas, classes políticas e instituições para os quais a atracção do lucro é uma boa coisa e para quem a política é a arte de impedir que os cidadãos se metam em assuntos que não lhes dizem respeito.
REFORMULAÇÃO DE PRINCÍPIOS
No entanto, uma vontade de mudança manifesta-se quase por toda a parte no planeta. Militantes associativos, professores universitários e unidades de pesquisa patrocinadas pelas Nações Unidas recusaram-se a ceder à intimidação intelectual exercida por instituições como o Banco Mundial. Puseram em dúvida a credibilidade dos discursos sobre a “boa política” a ser implementada. Na Índia ou no Brasil, a crítica a projectos de ajuda ao desenvolvimento que destroem o ecossistema, ou a empréstimos que acabam por esgotar os orçamentos públicos levou a algumas reformas na década de 90: a avaliação interna dos projectos e o estudo das suas consequências para a pobreza. A pressão exercida dessa maneira sobre os organismos internacionais não tem nada de extremista: trata-se simplesmente de se comportar como qualquer autoridade pública deveria comportar¬ se numa democracia.
Alguns consideram que a ajuda internacional não é passível de reforma e deveria ser suprimida, excepto em caso de urgência [9]. No entanto, outras vias deveriam ser exploradas, no sentido de uma reformulação dos princípios que regem a acção pública. A ajuda poderia ser repensada no âmbito de uma aparelhagem legislativa muito mais extensa, para redistribuir verdadeiramente as riquezas em escala mundial, e reforçar a coesão social. Tais mecanismos de redistribuição ou de solidariedade são correntes nos países ocidentais, em proveito de regiões menos favorecidas, e são controlados pelos representantes políticos. Essas transferências “em bloco” de riquezas correspondem primeiramente às preocupações dos beneficiários, mais do que àquelas das instituições financeiras. Tais sistemas funcionam melhor quando o espaço político é suficientemente aberto, para que os cidadãos e a mídia possam acompanhar e controlar os resultados. Dessa maneira, uma ajuda pública poderia contribuir para consolidar o espaço público. Se desejássemos substituir o actual regime de ajuda – oneroso, contraproducente e antidemocrático –, poderíamos inspirar¬ nos nos modelos de redistribuição pública já existentes.
____________
* Autor de Les Mirages de l’aide internationale, Enjeux Planète, Paris, 2003.
[1] Em 2002, depois de uma diminuição durante nove anos, o montante bruto da ajuda oficial aumentou, para se situar quase no mesmo nível, em termos reais, que em 1991. Mas esse crescimento é em parte artificial, pois os doadores incluíram, entre outras, as suas despesas de funcionamento.
[2] Com excepções, no entanto. Na França, por exemplo, era exigida a abertura dos mercados aos produtos americanos, inclusive aos filmes.
[3] Simon Kuznets, “Economic growth and income inequality”, American economic review. Princeton, vol. 45(1): 1-28, 1955.
[4] Hulya Dagdeviren et al, Redistribution matters, Employement paper 2001/10, Organisation internationale du travail, www.ilo.org
[5] Joseph Stiglitz, Wither reform? Ten years of the transition, discurso proferido no conselho de administração do Banco Mundial em Abril de 1999.
[6] Eric Toussaint, Briser la spirale infernale de la dette, Le Monde diplomatique, Setembro de 1999.
[7] Jacqueline Damon et al, Réformer le système d’aide. Le cas du Mali, Club du Sahel/OCDE, Paris, 2000.
[8] Bernard Cassen, “Le piège de la gouvernance”. Manière de voir, n.° 61, “L’Euro sans l’Europe”, Fevereiro de 2002.
[9] Réformer le système d’aide. Le cas du Mali, op. cit.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

No meu filho ninguém toca!

"O Tribunal de Torres Vedras decretou hoje a prisão preventiva para o homem que segunda-feira baleou um militar da GNR, deixando-o gravemente ferido, no lugar de Adega, concelho do Sobral de Monte Agraço." - Sic Online

No início desta semana fomos todos surpreendidos por mais um ataque de um cidadão às forças que desempenham o papel de instaurar e manter a ordem. Os motivos que levam a este tipo de crimes são os mais variados, mas gostaria de tentar perceber os deste em particular. Segundo foi divulgado, o alvo da acção da GNR nem era o indivíduo que efectuou o disparo e se barricou, mas o seu filho, cujo processo decorre em tribunal. A questão parece prender-se, assim, com uma tentativa desastrada, por parte de Manuel Cardoso, de proteger a sua cria a qualquer preço...

Quantas vezes não nos deparamos com situações que, não tendo o mesmo desfecho, se configuram semelhantes nas intenções e no sentido da acção? Por exemplo, nas nossas escolas, quantos conflitos não se verificam, entre pais e professores, porque os “tenros rebentos” não respeitaram as regras vigentes e, por isso, foram punidos, ou porque não estudaram o suficiente e tiveram má nota?
Entre o pai castigador e autoritário e o pai protector e permissivo há um leque enorme de possibilidades, talvez mais úteis à formação dos indivíduos, do que estes dois extremos. Defender a cria e prepará-la para a vida é dever de todos os animais, sendo que nos humanos esta tarefa se desenrola por muito mais tempo, se for executada dentro das normas aceitáveis. Negligenciar esses cuidados constitui crime punível por lei. Mas o que levará um(a) pai/mãe a defender a cria para além do razoável, privando-a de experimentar eventuais sanções decorrentes da sua acção? Será o facto de essas sanções serem aplicadas por terceiros, estranhos ao grupo familiar? Será o desrespeito dos próprios progenitores pelas regras vigentes, privilegiando a atitude do "salve-se quem puder", ou "vença quem for mais espertalhão"?

Ninguém ignora que muitas crianças gostam de testar as regras e verificar até que ponto elas podem ser flexíveis. No caso dos pequenos furtos, por exemplo, o que as move, muitas vezes, é a adrenalina decorrente da situação de perigo potencial em que se colocam, por estarem a fazer uma coisa proibida. E ninguém ignora que, nessas situações, nada ensina mais do que obrigá-los a devolver o que furtaram e pedir desculpa. E não é nada fácil, para as crianças e adolescentes, experimentar a vergonha de confessar o seu pequeno crime perante a vítima, mas é, decerto, uma lição que não esquecerão nunca, precisamente porque doeu no orgulho e "abanou" a auto-imagem.

Não será a super-protecção, também, uma forma de negligência?

Azul III



in: http://www.webatlas.com.br/foto.asp?codigo=147

Lago Vitória - Tanzânia (ao longe...)

terça-feira, janeiro 17, 2006

Palavras do realizador de "O Pesadelo de Darwin"

PRÉMIOS EUROPEUS DO CINEMA 2004 – MELHOR DOCUMENTÁRIO
e premiado nos festivais de VENEZA, BELFORT, COPENHAGA, MONTRÉAL, PARIS, CHICAGO, SALÓNICA, OSLO, MÉXICO, ANGERS e Selecção Oficial dos festivais de TORONTO, SAN SEBASTIAN e DOCLISBOA


NOTAS DE INTENÇÕES

AS ORIGENS DO PESADELO
A ideia deste filme nasceu durante a investigação para outro documentário "Kisangani Diary – Loin du Rwanda” , cujo assunto eram os refugiados da revolução no Congo. Foi em 1997 que fui testemunha pela primeira vez do tráfico destes enormes aviões. Enquanto um avião chegava da América com comida para os refugiados dos campos da ONU, um segundo avião descolava para a União Europeia com 50 toneladas de peixe a bordo.
O encontro e os laços de amizade que estabeleci com alguns dos elementos da equipa de um dos aviões de carga russos permitiram-me descobrir o impensável. Os aviões não traziam só ajuda humanitária dos países desenvolvidos, mas também traziam armas. Os aviões traziam a comida que os alimentava durante o dia e as armas que os matavam à noite. De manhã, a minha câmara que tremia filmava nesta selva os cadáveres e os campos destruídos.
Conhecer a cronologia e os rostos de uma realidade tão cínica tornou-se o objectivo de O PESADELO DE DARWIN.

O CENTRO DO MUNDO
A Região dos grandes lagos é o centro verde, fértil e mineral da África e é considerado como o berço da Humanidade.
Esta região é conhecida pela sua vida selvagem única, os seus vulcões cheios de neve e os seus parques nacionais. E ao mesmo tempo é o “coração das trevas”. As guerras civis que assolam este local têm origem numa espécie de esquecimento moral. Elas são, de longe, os conflitos mais mortíferos desde a Segunda Guerra Mundial.

No Congo, cada dia do ano, o número de mortos ligados à guerra é equivalente ao número de vítimas do 11 de Setembro em Nova Iorque.
Sem serem completamente ignoradas, as inumeráveis guerras são frequentemente classificadas como “conflitos tribais”, como os do Ruanda ou do Burundi.
As causas escondidas destas perturbações são, na maioria das vezes, interesses imperialistas por causa dos recursos naturais.

NO CORAÇÃO DAS TREVAS
Éramos uma pequena equipa a filmar O PESADELO DE DARWIN: Sandor, o meu habitual companheiro de viagem, a minha pequena câmara e eu.
Devia aproximar-me das “personagens” e seguir as suas vidas durante longos períodos. Era por isso fácil arranjar boas imagens, mas também era fácil ter problemas. Na Tanzânia, devíamos esconder a nossa actividade das autoridades. Para subir aos aviões de carga, tivemos de fingir que éramos pilotos e ter bilhetes de identidade falsos. Nas aldeias, pensaram que éramos missionários humanitários. Os directores das fábricas pensaram que éramos inspectores de higiene da União Europeia.
Também fingimos ser homens de negócios ou turistas inofensivos que andavam só a tirar fotografias. Perdemos imensos dias a enfrentar polícias corruptos e interrogatórios. Uma grande parte do dinheiro do orçamento do filme foi gasto a dar “luvas” para pagar a nossa liberdade. Para nós tratou-se de uma rotina morosa: não trabalhar, ficar sentado debaixo do implacável sol equatorial rodeado de milhões de esqueletos de percas do Nilo, tentando não enlouquecer.

A LEI DO MAIS FORTE?
A eterna questão é saber que estrutura social e política é a melhor para o mundo encontrar uma resposta. O capitalismo ganhou. As sociedades futuras serão
dominadas por um “sistema consumista”, considerado “civilizado” e “bom”. No sentido Darwiniano, o “bom sistema” ganhou. Ganhou ao convencer os seus inimigos ou então eliminando-os.
Em O PESADELO DE DARWIN tentei transformar a história do sucesso de um peixe e o boom efémero à volta deste animal “perfeito” numa alegoria irónica e assustadora sobre a nova ordem mundial. Mas a demonstração seria a mesma na Serra Leoa, nas Honduras, no Iraque, na Nigéria ou em Angola.
Para mim, o cinema é o único meio que consegue transmitir, com um verdadeiro impacto, algumas realidades.
A maior parte de nós conhece os mecanismos que destroem a actualidade sem ter verdadeiramente consciência.
Por exemplo, sempre que um recurso natural é descoberto, os habitantes desse local morrem na miséria, os filhos tornam-se soldados e as filhas criadas ou prostitutas.
Depois de centenas de anos de escravatura e colonização em África, os efeitos da globalização estão a infligir humilhações mortais aos habitantes.
A atitude arrogante dos países ricos no que diz respeito ao Terceiro Mundo cria perigos futuros para todos os povos.
“Não teríamos percas do Nilo no nosso supermercado se não houvesse Guerra em África.”
Neste documentário, tentei filmar o mais intimamente possível. Sergey, Dimond, Raphael, Eliza… São personagens verdadeiras que representam maravilhosamente a complexidade deste sistema. Para mim, elas representam um verdadeiro enigma.
« Podia fazer a mesma demonstração na Serra Leoa, e em vez de peixes teria diamantes, nas Honduras seriam bananas, no Iraque, na Nigéria e em Angola seria petróleo. »

Don't worry, be happy...

Ouço contar que agora, quando em África
Eclodem não sei quantas guerras
Quando as bombas explodem nas Cidades
E mulheres e crianças gritam,
Europa e USA, eternos jogadores de xadrez,
Jogam o seu jogo contínuo

À sombra dos pactos internacionais fitam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando movem os exércitos, e agora
Esperam o adversário,
Percas do Nilo, crude e diamantes
Saciam abundantemente a sua avidez.

Ardem casas, saqueados são
Os rios e os solos,
Violadas, as mulheres são mortas
Nas camas dos pilotos e dos soldados da paz,
Cheirando cola, as crianças
Dormem, mutiladas, nas ruas...
Mas onde estão, nos seus escritórios,
E longe de tudo isto,
Os jogadores de xadrez jogam
O jogo de xadrez

Inda que dos relatórios da ONU
Lhes cheguem os negros números,
E, ao reflectir, saibam desde a alma
Que por certo centenas de mulheres
E suas tenras filhas violadas são
Nessa distância que os satélites aproximam,
Inda que, no momento dos discursos públicos,
Uma sombra ligeira
Lhes passe na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volvem sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o comodismo ocidental está em perigo,
Que importa a carne e o osso
De milhares e milhares de africanos?
Quando o carro não serve
O passeio da família branca,
O massacre pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
À economia do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Esteja morrendo gente.

Mesmo que, de repente, sobre a fronteira
Surja a sanhuda face
De um emigrante clandestino, e breve deva
Numa estação de metro explodir
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado à assinatura dum acordo
Pra bombardear mais um país)
É ainda entregue ao jogo predilecto
Dos grandes predadores.

Caiam cidades, morram à fome os povos, cesse
A liberdade e a vida,
Que as doenças e as pragas alastrem
E apaguem da terra os miseráveis,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja a nossa moeda forte,
E haja petróleo nas refinarias
Pronto para gastar.

Meus irmãos em amarmos a nossa civilização
E a entendermos mais
Pelo prazer do que pela razão,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como ser felizes
Em cima de cadáveres.


( “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia”, de Ricardo Reis, versão revista e actualizada.)

domingo, janeiro 15, 2006

Azul II


Foto: Ivan Gromicho

E o engano de Kant...

“O conceito do direito mundial de cidadania não os protege (os povos) contra a agressão e a guerra, mas a mútua convivência e proveito os aproxima e une. O espirito comercial, incompatível com a guerra, se apodera tarde ou cedo dos povos. De todos os poderes subordinados à força do Estado, é o poder do dinheiro que inspira mais confiança e por isto os Estados se vêm obrigados - não certamente por motivos morais- a fomentar a paz...” - I.Kant - A paz perpétua, 1795

A realidade actual não podia ser mais adversa a este postulado filosófico, pois está cabalmente demonstrada não só a total compatibilidade entre o "espírito comercial" e a "guerra", como, em muitos casos, uma relação de causa-efeito entre o primeiro e a segunda. Basta observarmos a proliferação de conflitos bélicos de grandes proporções, resultantes da exploração e comércio do petróleo e outras matérias primas, dos conflitos sociais e desastres ecológicos resultantes da "deslocalização" de empresas para zonas onde a produção sai mais barata, das manipulações das opiniões públicas nos países ditos "desenvolvidos" a fim de se legitimarem intervenções militares mal fundamentadas e o fechar de olhos aos conflitos em África, a manobras oportunistas, à "cleptocracia" (não exclusiva de certos líderes africanos), etc, etc.

Ora, se quanto a esta parte a previsão de Kant se revelou desastrosa, resta-nos, numa perspectiva optimista, esperar que a primeira afirmação também se revele falsa e que o "conceito do direito mundial de cidadania", a ser largamente difundido por via de uma real globalização (não a actual, que é parcial e predatória, mas uma em que todos os cidadãos de todos os países do mundo tenham, realmente, os mesmos direitos) venha, de facto, a proteger "(os povos) contra a agressão e a guerra"...

O pior é se ele, nesse ponto, acertar...

sábado, janeiro 14, 2006

"O Pesadelo de Darwin"

Filme de Hubert Sauper
Sinopse
As margens do maior lago tropical do mundo, considerado como o berço da Humanidade, são hoje o palco do pior pesadelo da globalização.

Na Tanzânia, nos anos 60, a Perca do Nilo, um predador voraz, foi introduzida no lago Vitória, como experiência científica. Depois, praticamente todas as populações de peixes indígenas foram dizimadas. Desta catástrofe ecológica nasceu uma indústria frutuosa, pois a carne branca do enorme peixe é exportada com sucesso para todo o hemisfério norte.

Pescadores, políticos, pilotos russos, prostitutas, industriais e comissários europeus são os actores de um drama que ultrapassa as fronteiras do país africano.

No céu, enormes aviões de carga da ex-União Soviética formam um ballet incessante, abrindo a porta a outro tipo de comércio: o comércio de armas.

FICHA TÉCNICA
O Pesadelo de Darwin
Escrito e realizado por HUBERT SAUPER
FRANÇA/ÁUSTRIA/BÉLGICA 2004 COR 107'
Estreia dia 29 de Dezembro
http://www.atalantafilmes.pt/opesadelodedarwin

Em exibição no CINEMA NIMAS
Nos dias 8 e 15 de Janeiro as Sessões das 16H30 serão seguidas de debate (entrada livre no debate)

Azul I (Foto: National Geographic)

A Cauda...

Se tivermos em conta a cadeia alimentar, e o modo como a espécie humana aprendeu a dominar o meio de acordo com as suas necessidades, podemos definir a origem do Homem como predador, mas não sei se será correcto definir essa condição como um fim a atingir, pelo menos como único fim. A ser verdade, será caso para afirmar que a humanidade anda em círculos, que a evolução mais não significa do que um mero regresso às origens. Há filósofos que defendem esta tese, mas não tem de ser a única viável. Se o poder do predador deriva naturalmente da sua maior inteligência e da falta dela nas presas, convém lembrarmo-nos de que um predador médio pode facilmente transformar-se em presa de outro predador maior (ou mais poderoso). Tal observação conduz facilmente a juízos falaciosos como: todos aqueles que conseguiram conquistar o poder (predadores) são inteligentes - todos os oprimidos (presas) são falhos de inteligência.
A nossa experiência de observadores das disputas dos nossos políticos, em épocas de campanha eleitoral, mostram-nos, muitas vezes, quão falacioso é o juízo atrás enunciado, pois a conquista do poder, por si só, não é factor determinante de inteligência. A manutenção do poder conquistado é que o poderia ser. E essa manutenção, num regime democrático, depende do bom uso... Logo, vencer as eleições não significa ser mais inteligente do que o adversário, ou que o cidadão comum, se numa eventual recandidatura o poder passar para as mãos de outro. Significa, tão só, que o predador que ocupava o poder foi, de algum modo, "castigado" pelo vulgo - e das duas uma: ou foi desastradamente incompetente no exercício da predação (não sabendo, por exemplo, rodear-se de pessoal da sua confiança) ou, não tendo sido completamente incompetente, terá sido desastradamente ganancioso, não conseguindo disfarçar, aos olhos do público, o seu carácter de predador.
Por outro lado, a dicotomia predador/presa fazia sentido no tempo em que a actividade humana se caracterizava pela caça e recolecção. Essas características ainda permanecem, mas disputam o seu lugar com outra: a capacidade de construir, de criar. Ao criar, o Homem define-se mais como fundador do que como predador. Não se trata de negar o que existe, no Homem, de comum aos outros animais, mas também não podemos negar o que nele há de diferente, que é a capacidade de se interrogar sobre a razão da sua existência: será que só estamos aqui para nos "predarmos" uns aos outros, ou para fazermos algo mais? Será que nos movemos apenas pelo instinto? Qual o papel da razão em todo esse processo? Será que a nossa capacidade pensante nos serve, apenas, para concluirmos que não somos diferentes dos seres que não pensam?

Talvez não fosse má ideia que a espécie humana se deixasse de andar em círculos, a tentar "caçar" uma cauda que já não tem...

Da gaveta do meio (arquivo)

O que o Homem sabe de si é que possui uma tripla natureza: por um lado, há uma herança, que o liga à terra, ao animal, de onde lhe vêm as pulsões instintivas de auto-preservação, conquista e defesa territorial, competição, predação, etc; por outro, existe a razão, que o impulsiona para a conquista do saber, para a mudança, para o domínio do meio, para a construção do mundo; a sensibilidade realiza a síntese das duas e permite ao Homem formular aspirações ideais, tais como a conquista do belo, da felicidade, da perfeição, da harmonia. Ao longo da História, estas três características que configuram o humano têm andado desencontradas, nas acções da espécie humana, e esse desencontro ainda se verifica nos dias de hoje. Ao privilegiar a faceta animal, o Homem revela-se intransigente, egoísta, e conduz toda a sua acção para a posse: - a posse do poder; - a posse do território; - a posse da riqueza. Os resultados dessa linha de acção são bem visíveis, hoje, no desnivelamento, em termos de qualidade de vida, que existe entre os países ditos “desenvolvidos” e os outros, nas guerras, na hegemonia de certos países que detêm o controlo do armamento. Insistindo neste tipo de actuação, a humanidade extingue-se, ou extingue o que de humano há em si, o que vai dar no mesmo. Ao privilegiar a faceta racional, através do exercício exclusivo do saber, o Homem também corre o risco de se desligar da realidade que o rodeia e encerrar-se numa espécie de “torre de marfim”, alheado da respiração das coisas e do mundo. O perigo de ignorar os instintos de sobrevivência é, também, a extinção, quer física, quer social. Onde está, então, a solução? Que sentido há na existência humana, para além desta disputa constante entre o animal e o racional? Obviamente, a resposta terá de ser encontrada no exercício da sensibilidade. Só através de uma síntese equilibrada entre o que existe de animal, no Homem, e o que existe de racional, este poderá realizar-se enquanto ser e preservar a sua existência. E só quando todos os indivíduos que compõem a espécie humana, e não apenas uns poucos “privilegiados”, conseguirem realizar, em si, essa síntese, a Humanidade terá descoberto o sentido da vida e a razão da sua existência. E se o exposto já não é novidade para o Homem, porque ele já sabe isso de si, então porque é que continua a insistir na manutenção quase exclusiva da sua animalidade e a privilegiar o "ter" em detrimento do "ser"?

in: Fóruns do Publico.pt > Cidadania - reflexões acerca da condição humana, 17.07.2002

sexta-feira, janeiro 13, 2006

"Uma janela para o azul" foi uma tentativa desastrada para publicar um blog. Só não o eliminei da blogosfera porque, entretanto, o nome de utilizador não foi reconhecido. Por favor, ignorem-no. Se quiserem ler alguma coisa escrita por mim, leiam "bocados de azul". O resto é para esquecer.

"Euzinha, eu, euzona" é um título sugerido por uma colega como tema para um exercício de escrita criativa, num workshop por ela orientado, que comecei a frequentar. Embora possa suscitar alguma estranheza, não constitui sintoma de senilidade precoce nem de qualquer fragmentação de personalidade do tipo pessoano (quem me dera!). Trata-se, apenas, de dar forma a um diálogo interior, coloquial, em tom de amena cavaqueira, entre um fragmento de vivências de infância (Euzinha), a minha imagem profissional (Eu) e a minha consciência social, política, etc. (Euzona). Foi assim que decidi apresentar-me. Se o acharem demasiado longo, ou presunçoso, não o leiam.
Daqui por diante, privilegiarei, à superfície dos textos, o discurso da consciência social, humana, política, artística e o mais que vier à tona. A criança calar-se-á em público, da mulher privada nem ouvirão falar e da professora só virá aqui parar algum desabafo muito urgente, pois não é meu objectivo maçar-vos com assuntos de natureza estritamente pessoal.

Posto isto, faço minha uma frase de Almada Negreiros que li hoje (vou citar de cor):

"Todas as grandes frases que salvam a humanidade já foram ditas. Falta salvar a humanidade".

Euzinha, eu, euzona


Uma sala comum, misto de escritório e sala de estar, com uma
estante a abarrotar de livros, uma mesa com um computador e
uns almofadões a servir de sofá improvisado. À esquerda do
espectador, uma rapariga aparentando ter doze anos, rodopia
numa cadeira giratória, junto à estante, enquanto, no lado direito
do palco, uma mulher aparentando quarenta anos, de pé, martela
as teclas do computador, rindo sozinha e expelindo baforadas de
fumo de cigarro. A porta abre-se:

Eu – Desculpem o atraso! Vinha a caminho e lembrei-me de que
tinha de ir ao super-mercado. Tive de voltar atrás. (para Euzona,
que continuava a rir). Isso que estás aí a fazer é o meu currículo?
(Alarmada) Tem anedotas?!
Euzona – Nãaaa! Estou a rir-me de uma coisa que disseram aqui
num blog...
Eu – E o meu currículo?! Eu preciso dele para entregar amanhã na
Faculdade!
Euzona – Que stress! Desde que deixaste de fumar, ficaste assim!
Já está feito há tempos! Ali, em cima da mesa, vês?

(Eu pousa os sacos das compras no chão, acerca-se da mesa e
pega nos papéis)

Eu – Ok.... Helena Barrinha, 6/9/63, Coimbra, BI nº...
Euzinha(Faz rodar a cadeira para o meio do palco. Interrompe,
entusiasmada) Esse é o meu nome! Mas gosto mais que me chamem
Lena.(com uma expressão grave) Quando o meu pai se zanga comigo,
chama-me Helena Teresa... E também nasci em Coimbra, mas nunca
lá vivi...
Euzona – Nem eu...
Eu – Nem eu...
Euzinha – E o que é que vocês
dizem, quando alguém pergunta de que terra são?
Euzona – Eu não digo nada.... Ainda não descobri de onde quero ser... Talvezde uma ilha deserta com palmeiras, águas límpidas e
tépidas... desde que tenha internet, claro, ou de um país nórdico
qualquer.... desde que não faça frio... Ou de um sítio que ainda não
existe, com pessoas que ainda não foram“inventadas”...
Eu – Ah, pois! Eu digo sempre que sou de uma “terra de ninguém”.
Faz cá um efeito!
Euzona (Risos) Do tipo: “coitadinha!”?
Eu – Às vezes. Outras vezes é “esta passou-se!”
Euzinha – Pois eu tenho duas terras: o Funchal, onde estive cinco
anos e andei num colégio de freiras...
Eu e Euzona – Nas freiras? Tu? (Risos)
Euzinha – Pois! Era a escola que ficava mais perto de casa... Mas
isso não interessa nada. O que interessa é que o colégio era enorme
e tinha umas portas disfarçadas nos altares da igreja. Davam para
corredores secretos, onde eu adorava perder-me. As freiras deviam
gostar muito de mim, pois nunca me castigaram. Nem quando andei
com a caveira....
Eu e Euzona – (Abismadas) O quêêêê?!
Euzinha – Eu explico: o colégio era muito grande e tinha muitos
pátios. Num deles, no primeiro andar, havia um armário na parede.
Um dia eu e as minhas colegas encontrámos o armário aberto. Estava
uma caveira lá dentro. Elas começaram a gritar mas eu não tive medo,
pois já tinha visto muitas radiografias no hospital onde o meu pai
trabalhava. Então, peguei na caveira...
Eu e Euzona – Siiiimmm?
Euzinha – E corri atrás delas, com a boca a abrir e a fechar... a da
caveira! (Risos) Vocês também estão a precisar que eu feche as vossas!
Eu(Recuperando a compostura) Rica vida, sim senhor! Mas para que quereriam as freiras uma caveira?!
Euzinha – Não sei... Na minha outra terra, no Huambo, a escola já não era assim. A primeira professora que tive chamava-se Sãozinha. Pelo
nome, até podia ser simpática, mas era má como um touro! Quando
entrava na sala, todos eram obrigados a levantar-se e cantar o hino
nacional.... Mas as freiras não metinham ensinado o hino...
Eu – E como é que te desenrascaste?
Euzinha – No primeiro dia, quando as minhas colegas acabaram
de cantar, eu chorei a pensar que ela me ia bater... Mas dessa vez
escapei-me porque era a minha primeira aula. Já não tive tanta sorte
noutro dia, quando ela me perguntou quem eram os senhores
pendurados em cima do quadro...
Euzona – Salazar e Marcelo Caetano!
Euzinha – Pois, mas as freiras não me ensinaram....
Euzona – Mas, afinal, o que é que te ensinaram as freiras?
Euzinha – A ler.... e a fazer teatro!
Euzona – Estou a ver... Tipo: “A Anunciação do Anjo Gabriel
a Maria”...
Euzinha – Nessa fiz só o coro... mas isso agora não interessa nada!
Tirando a primeira escola onde andei, só até ao Natal, gostei muito
de estar em Angola. Fazíamos cabanas no quintal, apanhámos um camaleão, brincámos
uma vez com uma onça domesticada, andava de patins a tarde toda...
Comíamos mangas verdes e goiabas tiradas das árvores onde
tínhamos os nossos castelos...
Eu – Também gostei de estar em Angola, mas tive de sair de lá por
causa da guerra...
Euzona – A guerra! Tu sabes que há quem a considere legítima e a
defenda? Não, já nem falo desse! Mas, mesmo por cá, encontro tipos
nos foruns que têm essa postura! Num destes dias recebi um mail
da A. I. por causa das crianças soldado... Havias de ver! Alguma vez
a guerra pode ser solução para alguma coisa?
Eu – O ser humano é também predador, entre outras habilidades...
Euzona - Tantos milhões de anos de evolução para sermos o mais
sofisticado dos predadores?! Uma vez iniciei um debate sobre estes
assuntos e caíram-de em cima com as tretas do costume: “o ser
humano será sempre assim, está na sua natureza” ou “lá estás tu
com os teus lirismos”...
Eu – Tu não percebeste ainda que o pessoal não quer saber? Passas
tempo demais encafuada nos foruns a discutir esses assuntos e depois
queixas-te de insónias... Ainda por cima, ocupas-me o computador
quando preciso de trabalhar para a escola...
Euzona – E por que hás-de trazer trabalho para casa? Não podes
fazer tudo no local de trabalho, como as pessoas normais? Já basta
teres-me posto a dormir enquanto escrevias a tese!
Eu - É melhor nem responder! (Para Euzinha, que espetava o dedo no ar, como quem pede a palavra) Queres dizer alguma coisa?
Euzinha – Eu também percebi que havia guerra, pelo barulho das
metralhadoras e bombas. E havia sempre tropas armados, da UNITA,
nas ruas, à caça de militantes do MPLA... Uma colega minha, que era
pioneira, teve de fugir para o mato... Uma vez, ao entrar na escola,
vimos o muro cheio de sangue. Mataram gente ali, durante a noite...
Era também à noite que a minha mãe vinha aos nossos quartos mudar
a posição das camas, para não ficarem na linha de fogo se alguém
entrasse no quintal... Ela quase não dormia... E o meu pai estava
sempre a inventar armadilhas com amoníaco, para eles não entrarem....
Mas se eles quisessem mesmo entrar acho que as armadilhas não os
iam impedir... Uma vez fomos nós que ficámos na rua até às cinco
da manhã, porque um dos meus irmãos partiu a garrafa de amoníaco
com a bola...
Eu – Uff! Iam morrendo intoxicados!
Euzinha – Pois foi... sabes uma coisa? Depois de ter percebido bem
o que era a guerra, nunca mais brinquei aos tiros com armas de pau...
Eu – E eu, quanto mais vou sabendo mais me convenço da
impossibilidade de haver um ser infinitamente perfeito criador do
ser humano "à sua imagem e semelhança". E se há, enlouqueceu...
ou a “perfeição” não passa de um embuste... publicidade enganosa!
Euzona – Ainda há gente que se delicie a dissertar, nos noticiários,
sobre as capacidades mortíferas dos SCUDS e dos PATRIOT, ou
dos últimos modelos de tanques e aviões, como se fossem brinquedos...
Eu – Estás a falar do......
Euzona – Esse mesmo! Não posso com ele! E quanto a Deus, não
creio que exista fora do imaginário humano. O Homem teve
necessidade de criar um ser que o compensasse da sua pequenez
e comodismo. Aspira à vida eterna e à justiça divina, porque dá menos
trabalho do que aperfeiçoar-se e ser justo. Agarra-se à sua imperfeição
como se esta fosse um troféu de caça!
Eu - (olhando para os sacos esquecidos no chão) O jantar! Tenho de ir já fazer o jantar, senão atraso-me! Ainda vou dar aulas hoje!
Euzona – Vai lá.
Esta conversa deu-me umas ideias para escrever aqui umas coisas...
Acho que vou inaugurar um blog... Não sei se vai ser lido, mas ao
menos servir-me-á para arrumar ideias e dizer o que penso...
Eu – Sempre é melhor do que falar com as paredes...!

(Euzona vai buscar a cadeira e senta-se ao computador,
acendendo mais um cigarro. Euzinha calça os patins e sai.
Eu vai para a cozinha, com os sacos das compras. Cai o pano.)

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