terça-feira, janeiro 17, 2006

Don't worry, be happy...

Ouço contar que agora, quando em África
Eclodem não sei quantas guerras
Quando as bombas explodem nas Cidades
E mulheres e crianças gritam,
Europa e USA, eternos jogadores de xadrez,
Jogam o seu jogo contínuo

À sombra dos pactos internacionais fitam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando movem os exércitos, e agora
Esperam o adversário,
Percas do Nilo, crude e diamantes
Saciam abundantemente a sua avidez.

Ardem casas, saqueados são
Os rios e os solos,
Violadas, as mulheres são mortas
Nas camas dos pilotos e dos soldados da paz,
Cheirando cola, as crianças
Dormem, mutiladas, nas ruas...
Mas onde estão, nos seus escritórios,
E longe de tudo isto,
Os jogadores de xadrez jogam
O jogo de xadrez

Inda que dos relatórios da ONU
Lhes cheguem os negros números,
E, ao reflectir, saibam desde a alma
Que por certo centenas de mulheres
E suas tenras filhas violadas são
Nessa distância que os satélites aproximam,
Inda que, no momento dos discursos públicos,
Uma sombra ligeira
Lhes passe na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volvem sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o comodismo ocidental está em perigo,
Que importa a carne e o osso
De milhares e milhares de africanos?
Quando o carro não serve
O passeio da família branca,
O massacre pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
À economia do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Esteja morrendo gente.

Mesmo que, de repente, sobre a fronteira
Surja a sanhuda face
De um emigrante clandestino, e breve deva
Numa estação de metro explodir
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado à assinatura dum acordo
Pra bombardear mais um país)
É ainda entregue ao jogo predilecto
Dos grandes predadores.

Caiam cidades, morram à fome os povos, cesse
A liberdade e a vida,
Que as doenças e as pragas alastrem
E apaguem da terra os miseráveis,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja a nossa moeda forte,
E haja petróleo nas refinarias
Pronto para gastar.

Meus irmãos em amarmos a nossa civilização
E a entendermos mais
Pelo prazer do que pela razão,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como ser felizes
Em cima de cadáveres.


( “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia”, de Ricardo Reis, versão revista e actualizada.)

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