quarta-feira, janeiro 25, 2006

Terá mudado alguma coisa?

Os estudos estão feitos. As denúncias também. Resta saber o que muda, nas relações entre os países ditos "desenvolvidos" e os outros, em função do saber acumulado que os quilómetros de papel dos relatórios produzidos quer pela ONU, quer pelos observatórios internacionais, veiculam ano após ano, para resolver, de forma eficaz, os problemas detectados... A mim, parece-me que tais instituições absorvem, para o funcionamento da sua máquina administrativa, mais verba do que a que, de facto, disponibilizam. Para a implementação de cada projecto no terreno, é comum gastar-se mais dinheiro na logística e no pagamento aos especialistas, do que na ajuda efectiva às populações-alvo... O que acaba por ser uma "boa saída profissional" para os funcionários envolvidos, com garantias de salários chorudos e uma reforma muito superior à que aufeririam se estivessem nos seus países a desempenhar funções idênticas. Deste modo, se vai desvirtuando alegremente o papel da ONU e de qualquer campanha de solidariedade internacional. O caso de Timor é, também a esse nível, emblemático, tal como o de outros tantos,referidos neste artigo:

Setembro 2004

Ajuda que espolia

David Sogge *

Le Monde Diplomatique – Edição Brasileira

A ajuda pública internacional tornou-se uma enorme indústria: o seu facturamento anual ultrapassa 60 biliões de euros, envolvendo, directa ou indirectamente, mais de 500 mil pessoas. Porém, mais do que sobre o seu montante [1], o debate deve concentrar¬ se na democratização do sistema de ajuda. Na realidade, este veicula permanentemente ideias sobre o desenvolvimento e representa a matriz das relações entre países ricos e países pobres. E, se doadores e beneficiários enfatizam as suas qualidades, pelo menos em público, ela não deixa de ter zonas nebulosas. É um estranho paradoxo: nos países em que desempenha um papel importante, o orgulho e a ambição cederam lugar à dependência e à deferência; a pobreza e as desigualdades aumentaram e prevalece a insegurança. A República Democrática do Congo, a Serra Leoa, o Haiti ou a Guiné Bissau, por exemplo, que beneficiaram de uma ajuda em grande escala, são Estados falidos.
No entanto, a ajuda internacional foi construída historicamente em outras bases. O sucesso do plano Marshall, depois da II Guerra mundial, foi emblemático. Lançado pelos Estados Unidos, a sua gestão foi confiada aos europeus, e Washington não pedia aos países beneficiários que renunciassem à protecção das suas indústrias, que desregulamentassem os seus mercados financeiros, nem que acertassem sem demora as suas dívidas [2]. E se o plano Marshall teve sucesso, foi precisamente porque, de inspiração keynesiana, era destinado a revitalizar o capitalismo europeu por intermédio de uma regulação pública e de investimentos sociais.
PROBLEMA E SOLUÇÃO
Mas, desde a década de 50, opções ideológicas questionáveis acompanharam a implantação da ajuda na África, na América do Sul ou na Europa do Leste. Determinados economistas consideravam as desigualdades sociais como inevitáveis e até necessárias ao crescimento [3]. A ideia de redistribuir a terra ou a renda podia, portanto, ser descartada como irrealizável ou decididamente estúpida. Actualmente, esse velho paradigma revela as suas fragilidades. Pesquisadores sugerem que as desigualdades constituem, na realidade, um obstáculo ao crescimento e à luta contra a miséria [4], pois a ajuda esbarra sistematicamente no ultraliberalismo e na austeridade que as terapias de choque impõem aos simples cidadãos, enquanto um generoso acesso é garantido a empresários improvisados. Na ausência de controles públicos e de mecanismos de responsabilidade, as sociedades ocidentais e uma casta de oligarcas mafiosos locais tiram proveito dos programas de ajuda, como na ex União Soviética.
Alguns consideram que os criadores da ajuda não devem ser censurados. Ao contrário, para Joseph Stiglitz, prémio Nobel de economia, o procedimento deles equivale a «usar um lança-chamas para retirar a pintura gasta de uma casa e em seguida lamentar-se por não poder voltar a pintá-la, com o pretexto de que a casa está reduzida a cinzas» [5].
A redução da pobreza só se tornou a razão de ser oficial da ajuda internacional no final da década de 90. No entanto, como fora criada para atingir paralelamente outros objectivos – a luta contra o comunismo e a abertura dos mercados aos produtos e aos investimentos ocidentais –, pode-se duvidar da realidade dessa mudança de estratégia. É verdade que a ajuda, como catalisador de uma dinâmica de desenvolvimento, pode ter efeitos emancipadores: campanhas de vacinação e reforço dos sistemas públicos de saúde na Ásia do Sul e em certos países da África; apoio ao movimento anti-apartheid; luta contra os grandes proprietários de terras em Taiwan etc. Por outro lado, quando é guiada por uma espécie de leninismo do mercado (imposição de um modelo unívoco e desigual de política económica em favor de uma propaganda “orweliana”), a ajuda torna-se tanto um problema quanto uma solução. Na década de 70, por exemplo, a desertificação na África saheliana e sub-saheliana foi atribuída às populações das regiões de bosques e das pastagens, acusadas de imprevidência e de má gestão. Mas tais acusações tinham pouco a ver com a realidade e eram apenas pretextos para privar as populações da posse do seu meio ambiente e valorizar projectos tecnocráticos de ajuda.
AJUDA AOS RICOS
A ajuda ao desenvolvimento está recheada de ambiguidades. Para além das declarações, o dever de dar acoberta um gémeo inseparável e muito maior: o desejo de tomar. As transferências de fundos dos ricos para os pobres são bem menores do que os dados oficiais deixam perceber. A maior parte das quantias dadas ou emprestadas é gasta nos países doadores, ou para eles retorna: juros da dívida [6], fuga de capitais, remessas ilícitas de lucros, fuga de cérebros, compra de bens e de material... Em 2001, por exemplo, 29 biliões de dólares de subvenção foram concedidos aos países em vias de desenvolvimento, enquanto 138 biliões de dólares voltavam para os países credores a título de pagamento da dívida. Do economista Joseph Stiglitz ao investidor George Soros, todos estão de acordo em dizer que são os pobres que ajudam os ricos.
Se as preocupações mercantis e os interesses geopolíticos sempre afloraram nos discursos, nem sempre é fácil fazer aparecer a verdadeira hierarquia das motivações, de tanto que as elites aprenderam a mudar de vocabulário sem mudar de práticas: “crescimento equilibrado”, “abertura dos mercados”, “satisfação das necessidades básicas”, “luta contra a pobreza”, etc. são as novas roupagens de uma mesma visão. A ajuda aparece como um teatro de sombras que distrai a atenção dos pontos verdadeiramente importantes. As guerras comandadas à distância contra regimes nacionalistas de esquerda ou contra plantadores de ópio ou de coca desorganizaram regiões que a ajuda deveria ajudar. O dumping praticado pelo Ocidente em benefício dos seus cereais, da sua carne e dos seus têxteis corroeu, se não reduziu a nada, os apoios dados às produções locais no âmbito da ajuda. Da mesma forma, os países pobres devem aumentar o seu capital humano graças às bolsas subvencionadas pela ajuda. No entanto, ao mesmo tempo, os países doadores desempregam activamente profissionais da saúde, engenheiros e profissionais de informática do hemisfério Sul. De três africanos que têm um diploma universitário, um trabalha fora da África.
FUNDAMENTALISMO LIBERAL
Mas é a participação da ajuda na imposição do fundamentalismo liberal que é a mãe de todas as incoerências; é da sua cumplicidade com uma escola de pensamento económico encantatório que nascem as contradições. Na América do Sul, na África e na ex-União Soviética os efeitos dessa visão política chamam-se pouco crescimento, exclusão social, empobrecimento dos serviços públicos e instabilidade política. Ora, são precisamente esses fenómenos que tiram a eficácia da ajuda. Na década de 70, por exemplo, as orientações políticas socializantes da Tanzânia seduziam os social¬ democratas suecos, que incentivaram o apoio ao sector público e à independência nacional. Mas, em meados da década de 80, a onda neoliberal e a exigência de coordenar a ajuda conduziram os suecos a deixar de apoiar a recusa, pela Tanzânia, do ajuste estrutural. A partir de então, a política de Estocolmo baseia¬ se no consenso de Washington.
O discurso sobre a ajuda usa termos como “participação cidadã” ou “controle local das políticas”. No entanto, a concepção da ajuda, a sua organização e a sua implantação continuam a ser prerrogativa de estrangeiros. E mesmo quando as agências ocidentais não estão na primeira linha, os seus representantes formados nos países do hemisfério Norte – os “Chicago boys”, na América Latina, a “Berkeley máfia”, na Indonésia, ou os “africagoboys” – são os promotores zelosos dos mesmos princípios, graças às posições estratégicas que ocupam no interior dos ministérios das finanças locais e dos bancos centrais.
Durante os últimos 25 anos, os mecanismos de ajuda não só contribuíram para enfraquecer as soberanias, mas também para deslegitimar o Estado e os poderes públicos. A gestão da ajuda mostra isso claramente: os doadores preferem tratar com empresas privadas, organizações não governamentais ou estruturas paralelas ad hoc, tais como as empresas de reforma e de desenvolvimento da África do Oeste.
ATAQUE À SOBERANIA
Essa atitude deixa os Estados fora da competição (mesmo que os melhores agentes públicos sejam frequentemente despedidos para gerir uma ajuda não fiscalizada) e impede qualquer controle democrático. As autoridades nacionais prestam mais contas aos doadores do que aos seus cidadãos. Em resumo, tanto o Estado como a própria noção de política pública são esvaziados de sentido. Em muitos países ajudados, viu¬ se a deterioração dos serviços básicos (educação, saúde). É uma realidade reconhecida, por exemplo, num relatório da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE) referente ao Mali, publicado em 2000. Segundo esse estudo, «a ajuda enfraquece as instituições nacionais», ao deixar de lado os sectores públicos. Além disso, é isenta de impostos e de taxas e «não leva em conta contribuições malianas ao desenvolvimento»; a OCDE enfatiza a contradição entre a importância nominal da ajuda (50 dólares por habitante durante 20 anos) e a estagnação e até a regressão do padrão de vida das classes médias e pobres nesse país, submetido, desde 1981, a planos de ajuste estrutural [7]. Por fim, as privatizações, em condições muitas vezes pouco transparentes, criaram uma classe de novos ricos ligados a interesses ocidentais e alimentaram uma forma de cinismo geral. A ordem pública foi fragilizada por inteiro.
Em meados da década de 90, os riscos de derrocada de certos países, o não respeito das condições da ajuda e as ameaças de não pagamento da dívida provocaram uma mudança de orientação. A “boa governança” tornou-se um dos critérios para obtenção da ajuda, tendo, como objectivo oficial, lutar contra a corrupção, tornar a gestão pública mais “transparente”, aumentar o esforço de fiscalização e permitir que vozes discordantes se fizessem ouvir na imprensa e na sociedade civil. Mas, se essas reformas são frequentemente necessárias, muitos vêem nelas apenas uma manobra para o prosseguimento das políticas de austeridade impopulares, de descrédito do poder público e enfatizam a continuidade ideológica dessa “reviravolta” [8]. Quais seriam, de facto, as motivações de pessoas encarregadas de promover a “governança”? Uma das heranças da ajuda é um vasto déficit democrático que mantém no poder tecnocratas, classes políticas e instituições para os quais a atracção do lucro é uma boa coisa e para quem a política é a arte de impedir que os cidadãos se metam em assuntos que não lhes dizem respeito.
REFORMULAÇÃO DE PRINCÍPIOS
No entanto, uma vontade de mudança manifesta-se quase por toda a parte no planeta. Militantes associativos, professores universitários e unidades de pesquisa patrocinadas pelas Nações Unidas recusaram-se a ceder à intimidação intelectual exercida por instituições como o Banco Mundial. Puseram em dúvida a credibilidade dos discursos sobre a “boa política” a ser implementada. Na Índia ou no Brasil, a crítica a projectos de ajuda ao desenvolvimento que destroem o ecossistema, ou a empréstimos que acabam por esgotar os orçamentos públicos levou a algumas reformas na década de 90: a avaliação interna dos projectos e o estudo das suas consequências para a pobreza. A pressão exercida dessa maneira sobre os organismos internacionais não tem nada de extremista: trata-se simplesmente de se comportar como qualquer autoridade pública deveria comportar¬ se numa democracia.
Alguns consideram que a ajuda internacional não é passível de reforma e deveria ser suprimida, excepto em caso de urgência [9]. No entanto, outras vias deveriam ser exploradas, no sentido de uma reformulação dos princípios que regem a acção pública. A ajuda poderia ser repensada no âmbito de uma aparelhagem legislativa muito mais extensa, para redistribuir verdadeiramente as riquezas em escala mundial, e reforçar a coesão social. Tais mecanismos de redistribuição ou de solidariedade são correntes nos países ocidentais, em proveito de regiões menos favorecidas, e são controlados pelos representantes políticos. Essas transferências “em bloco” de riquezas correspondem primeiramente às preocupações dos beneficiários, mais do que àquelas das instituições financeiras. Tais sistemas funcionam melhor quando o espaço político é suficientemente aberto, para que os cidadãos e a mídia possam acompanhar e controlar os resultados. Dessa maneira, uma ajuda pública poderia contribuir para consolidar o espaço público. Se desejássemos substituir o actual regime de ajuda – oneroso, contraproducente e antidemocrático –, poderíamos inspirar¬ nos nos modelos de redistribuição pública já existentes.
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* Autor de Les Mirages de l’aide internationale, Enjeux Planète, Paris, 2003.
[1] Em 2002, depois de uma diminuição durante nove anos, o montante bruto da ajuda oficial aumentou, para se situar quase no mesmo nível, em termos reais, que em 1991. Mas esse crescimento é em parte artificial, pois os doadores incluíram, entre outras, as suas despesas de funcionamento.
[2] Com excepções, no entanto. Na França, por exemplo, era exigida a abertura dos mercados aos produtos americanos, inclusive aos filmes.
[3] Simon Kuznets, “Economic growth and income inequality”, American economic review. Princeton, vol. 45(1): 1-28, 1955.
[4] Hulya Dagdeviren et al, Redistribution matters, Employement paper 2001/10, Organisation internationale du travail, www.ilo.org
[5] Joseph Stiglitz, Wither reform? Ten years of the transition, discurso proferido no conselho de administração do Banco Mundial em Abril de 1999.
[6] Eric Toussaint, Briser la spirale infernale de la dette, Le Monde diplomatique, Setembro de 1999.
[7] Jacqueline Damon et al, Réformer le système d’aide. Le cas du Mali, Club du Sahel/OCDE, Paris, 2000.
[8] Bernard Cassen, “Le piège de la gouvernance”. Manière de voir, n.° 61, “L’Euro sans l’Europe”, Fevereiro de 2002.
[9] Réformer le système d’aide. Le cas du Mali, op. cit.

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