sábado, janeiro 14, 2006

Da gaveta do meio (arquivo)

O que o Homem sabe de si é que possui uma tripla natureza: por um lado, há uma herança, que o liga à terra, ao animal, de onde lhe vêm as pulsões instintivas de auto-preservação, conquista e defesa territorial, competição, predação, etc; por outro, existe a razão, que o impulsiona para a conquista do saber, para a mudança, para o domínio do meio, para a construção do mundo; a sensibilidade realiza a síntese das duas e permite ao Homem formular aspirações ideais, tais como a conquista do belo, da felicidade, da perfeição, da harmonia. Ao longo da História, estas três características que configuram o humano têm andado desencontradas, nas acções da espécie humana, e esse desencontro ainda se verifica nos dias de hoje. Ao privilegiar a faceta animal, o Homem revela-se intransigente, egoísta, e conduz toda a sua acção para a posse: - a posse do poder; - a posse do território; - a posse da riqueza. Os resultados dessa linha de acção são bem visíveis, hoje, no desnivelamento, em termos de qualidade de vida, que existe entre os países ditos “desenvolvidos” e os outros, nas guerras, na hegemonia de certos países que detêm o controlo do armamento. Insistindo neste tipo de actuação, a humanidade extingue-se, ou extingue o que de humano há em si, o que vai dar no mesmo. Ao privilegiar a faceta racional, através do exercício exclusivo do saber, o Homem também corre o risco de se desligar da realidade que o rodeia e encerrar-se numa espécie de “torre de marfim”, alheado da respiração das coisas e do mundo. O perigo de ignorar os instintos de sobrevivência é, também, a extinção, quer física, quer social. Onde está, então, a solução? Que sentido há na existência humana, para além desta disputa constante entre o animal e o racional? Obviamente, a resposta terá de ser encontrada no exercício da sensibilidade. Só através de uma síntese equilibrada entre o que existe de animal, no Homem, e o que existe de racional, este poderá realizar-se enquanto ser e preservar a sua existência. E só quando todos os indivíduos que compõem a espécie humana, e não apenas uns poucos “privilegiados”, conseguirem realizar, em si, essa síntese, a Humanidade terá descoberto o sentido da vida e a razão da sua existência. E se o exposto já não é novidade para o Homem, porque ele já sabe isso de si, então porque é que continua a insistir na manutenção quase exclusiva da sua animalidade e a privilegiar o "ter" em detrimento do "ser"?

in: Fóruns do Publico.pt > Cidadania - reflexões acerca da condição humana, 17.07.2002

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