sexta-feira, janeiro 13, 2006

Euzinha, eu, euzona


Uma sala comum, misto de escritório e sala de estar, com uma
estante a abarrotar de livros, uma mesa com um computador e
uns almofadões a servir de sofá improvisado. À esquerda do
espectador, uma rapariga aparentando ter doze anos, rodopia
numa cadeira giratória, junto à estante, enquanto, no lado direito
do palco, uma mulher aparentando quarenta anos, de pé, martela
as teclas do computador, rindo sozinha e expelindo baforadas de
fumo de cigarro. A porta abre-se:

Eu – Desculpem o atraso! Vinha a caminho e lembrei-me de que
tinha de ir ao super-mercado. Tive de voltar atrás. (para Euzona,
que continuava a rir). Isso que estás aí a fazer é o meu currículo?
(Alarmada) Tem anedotas?!
Euzona – Nãaaa! Estou a rir-me de uma coisa que disseram aqui
num blog...
Eu – E o meu currículo?! Eu preciso dele para entregar amanhã na
Faculdade!
Euzona – Que stress! Desde que deixaste de fumar, ficaste assim!
Já está feito há tempos! Ali, em cima da mesa, vês?

(Eu pousa os sacos das compras no chão, acerca-se da mesa e
pega nos papéis)

Eu – Ok.... Helena Barrinha, 6/9/63, Coimbra, BI nº...
Euzinha(Faz rodar a cadeira para o meio do palco. Interrompe,
entusiasmada) Esse é o meu nome! Mas gosto mais que me chamem
Lena.(com uma expressão grave) Quando o meu pai se zanga comigo,
chama-me Helena Teresa... E também nasci em Coimbra, mas nunca
lá vivi...
Euzona – Nem eu...
Eu – Nem eu...
Euzinha – E o que é que vocês
dizem, quando alguém pergunta de que terra são?
Euzona – Eu não digo nada.... Ainda não descobri de onde quero ser... Talvezde uma ilha deserta com palmeiras, águas límpidas e
tépidas... desde que tenha internet, claro, ou de um país nórdico
qualquer.... desde que não faça frio... Ou de um sítio que ainda não
existe, com pessoas que ainda não foram“inventadas”...
Eu – Ah, pois! Eu digo sempre que sou de uma “terra de ninguém”.
Faz cá um efeito!
Euzona (Risos) Do tipo: “coitadinha!”?
Eu – Às vezes. Outras vezes é “esta passou-se!”
Euzinha – Pois eu tenho duas terras: o Funchal, onde estive cinco
anos e andei num colégio de freiras...
Eu e Euzona – Nas freiras? Tu? (Risos)
Euzinha – Pois! Era a escola que ficava mais perto de casa... Mas
isso não interessa nada. O que interessa é que o colégio era enorme
e tinha umas portas disfarçadas nos altares da igreja. Davam para
corredores secretos, onde eu adorava perder-me. As freiras deviam
gostar muito de mim, pois nunca me castigaram. Nem quando andei
com a caveira....
Eu e Euzona – (Abismadas) O quêêêê?!
Euzinha – Eu explico: o colégio era muito grande e tinha muitos
pátios. Num deles, no primeiro andar, havia um armário na parede.
Um dia eu e as minhas colegas encontrámos o armário aberto. Estava
uma caveira lá dentro. Elas começaram a gritar mas eu não tive medo,
pois já tinha visto muitas radiografias no hospital onde o meu pai
trabalhava. Então, peguei na caveira...
Eu e Euzona – Siiiimmm?
Euzinha – E corri atrás delas, com a boca a abrir e a fechar... a da
caveira! (Risos) Vocês também estão a precisar que eu feche as vossas!
Eu(Recuperando a compostura) Rica vida, sim senhor! Mas para que quereriam as freiras uma caveira?!
Euzinha – Não sei... Na minha outra terra, no Huambo, a escola já não era assim. A primeira professora que tive chamava-se Sãozinha. Pelo
nome, até podia ser simpática, mas era má como um touro! Quando
entrava na sala, todos eram obrigados a levantar-se e cantar o hino
nacional.... Mas as freiras não metinham ensinado o hino...
Eu – E como é que te desenrascaste?
Euzinha – No primeiro dia, quando as minhas colegas acabaram
de cantar, eu chorei a pensar que ela me ia bater... Mas dessa vez
escapei-me porque era a minha primeira aula. Já não tive tanta sorte
noutro dia, quando ela me perguntou quem eram os senhores
pendurados em cima do quadro...
Euzona – Salazar e Marcelo Caetano!
Euzinha – Pois, mas as freiras não me ensinaram....
Euzona – Mas, afinal, o que é que te ensinaram as freiras?
Euzinha – A ler.... e a fazer teatro!
Euzona – Estou a ver... Tipo: “A Anunciação do Anjo Gabriel
a Maria”...
Euzinha – Nessa fiz só o coro... mas isso agora não interessa nada!
Tirando a primeira escola onde andei, só até ao Natal, gostei muito
de estar em Angola. Fazíamos cabanas no quintal, apanhámos um camaleão, brincámos
uma vez com uma onça domesticada, andava de patins a tarde toda...
Comíamos mangas verdes e goiabas tiradas das árvores onde
tínhamos os nossos castelos...
Eu – Também gostei de estar em Angola, mas tive de sair de lá por
causa da guerra...
Euzona – A guerra! Tu sabes que há quem a considere legítima e a
defenda? Não, já nem falo desse! Mas, mesmo por cá, encontro tipos
nos foruns que têm essa postura! Num destes dias recebi um mail
da A. I. por causa das crianças soldado... Havias de ver! Alguma vez
a guerra pode ser solução para alguma coisa?
Eu – O ser humano é também predador, entre outras habilidades...
Euzona - Tantos milhões de anos de evolução para sermos o mais
sofisticado dos predadores?! Uma vez iniciei um debate sobre estes
assuntos e caíram-de em cima com as tretas do costume: “o ser
humano será sempre assim, está na sua natureza” ou “lá estás tu
com os teus lirismos”...
Eu – Tu não percebeste ainda que o pessoal não quer saber? Passas
tempo demais encafuada nos foruns a discutir esses assuntos e depois
queixas-te de insónias... Ainda por cima, ocupas-me o computador
quando preciso de trabalhar para a escola...
Euzona – E por que hás-de trazer trabalho para casa? Não podes
fazer tudo no local de trabalho, como as pessoas normais? Já basta
teres-me posto a dormir enquanto escrevias a tese!
Eu - É melhor nem responder! (Para Euzinha, que espetava o dedo no ar, como quem pede a palavra) Queres dizer alguma coisa?
Euzinha – Eu também percebi que havia guerra, pelo barulho das
metralhadoras e bombas. E havia sempre tropas armados, da UNITA,
nas ruas, à caça de militantes do MPLA... Uma colega minha, que era
pioneira, teve de fugir para o mato... Uma vez, ao entrar na escola,
vimos o muro cheio de sangue. Mataram gente ali, durante a noite...
Era também à noite que a minha mãe vinha aos nossos quartos mudar
a posição das camas, para não ficarem na linha de fogo se alguém
entrasse no quintal... Ela quase não dormia... E o meu pai estava
sempre a inventar armadilhas com amoníaco, para eles não entrarem....
Mas se eles quisessem mesmo entrar acho que as armadilhas não os
iam impedir... Uma vez fomos nós que ficámos na rua até às cinco
da manhã, porque um dos meus irmãos partiu a garrafa de amoníaco
com a bola...
Eu – Uff! Iam morrendo intoxicados!
Euzinha – Pois foi... sabes uma coisa? Depois de ter percebido bem
o que era a guerra, nunca mais brinquei aos tiros com armas de pau...
Eu – E eu, quanto mais vou sabendo mais me convenço da
impossibilidade de haver um ser infinitamente perfeito criador do
ser humano "à sua imagem e semelhança". E se há, enlouqueceu...
ou a “perfeição” não passa de um embuste... publicidade enganosa!
Euzona – Ainda há gente que se delicie a dissertar, nos noticiários,
sobre as capacidades mortíferas dos SCUDS e dos PATRIOT, ou
dos últimos modelos de tanques e aviões, como se fossem brinquedos...
Eu – Estás a falar do......
Euzona – Esse mesmo! Não posso com ele! E quanto a Deus, não
creio que exista fora do imaginário humano. O Homem teve
necessidade de criar um ser que o compensasse da sua pequenez
e comodismo. Aspira à vida eterna e à justiça divina, porque dá menos
trabalho do que aperfeiçoar-se e ser justo. Agarra-se à sua imperfeição
como se esta fosse um troféu de caça!
Eu - (olhando para os sacos esquecidos no chão) O jantar! Tenho de ir já fazer o jantar, senão atraso-me! Ainda vou dar aulas hoje!
Euzona – Vai lá.
Esta conversa deu-me umas ideias para escrever aqui umas coisas...
Acho que vou inaugurar um blog... Não sei se vai ser lido, mas ao
menos servir-me-á para arrumar ideias e dizer o que penso...
Eu – Sempre é melhor do que falar com as paredes...!

(Euzona vai buscar a cadeira e senta-se ao computador,
acendendo mais um cigarro. Euzinha calça os patins e sai.
Eu vai para a cozinha, com os sacos das compras. Cai o pano.)

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