segunda-feira, fevereiro 27, 2006

O Deus das Moscas

Comecei a desconfiar de Rousseau quando li O Deus das Moscas. De súbito, a questão impôs-se: “Será mesmo o Homem naturalmente bom?”. A avaliar pelo comportamento daquele bando de crianças, numa ilha deserta, entregando-se a uma escalada de violência que culminou numa vaga de assassinatos e no incêndio final, a resposta parece óbvia: a bondade não é inata ao Homem, mas sim adquirida, tal como são adquiridos todos os hábitos, bons ou maus, pelo convívio social.
Lembrei-me destas personagens de William Golding a propósito do acontecimento nacional mais marcante da semana que passou: o assassinato de um transexual, sem-abrigo, no Porto, por um grupo de adolescentes, com requintes de barbarismo que fariam Rousseau virar-se no túmulo. Gisberta, era seu nome, de nacionalidade brasileira, 46 anos, toxicodependente, portadora de HIV e de pneumonia. Antes da cocaína tomar conta da sua existência tinha sido uma mulher belíssima, segundo os depoimentos de quem a conheceu de perto, nos seus dias áureos.
O percurso que terá levado Gisberta à decadência, parece ter sido semelhante a tantos outros: o glamour dos espectáculos nocturnos, em bares, muitas vezes não deixa ver a solidão que se esconde debaixo do brilho das lantejoulas e das plumas. Com efeito, apesar de ter sido ocasionalmente apoiada por diversas instituições, e de ter amigos que se prontificaram a fazer uma vigília em sua homenagem, Gisberta morreu porque, acima de tudo, estava só. Só, à mercê de um grupo de adolescentes, também eles entregues a si mesmos, à procura de emoções fortes ou de vingar o abandono a que estavam sujeitos, apesar de alguns terem família e de outros estarem ao abrigo de uma instituição.
Se a bondade tem de ser adquirida, a educação e o ambiente em que as crianças vivem são cruciais para que essa aquisição se faça. As crianças apreendem as normas de convivência social, e o respeito pelos valores a elas inerentes, primeiro por mimetismo e só depois pela consciencialização. Quantos filhos de pais violentos não repetem esse padrão de comportamento em adultos? Quantos filhos de pais alcoólicos não apresentam as mesmas tendências? Quantos jovens abusados fisicamente não transferem para outros, inocentes, a vingança da humilhação sofrida, por não poderem virá-la contra os abusadores?
Cabe à família e às instituições de ensino o papel de trabalhar junto das crianças o respeito pelos direitos humanos, de modo a que, pela consciencialização desses valores, elas acabem por contrariar a tendência mimética que as leva a imitar os comportamentos desviantes, ou mesmo delinquentes, de adultos com os quais convivem no dia-a-dia. Mas neste caso, tudo isso parece ter falhado: a consciencialização do respeito pelo outro, e pelas suas diferenças, não se fez. Ou porque nunca foi posta em prática, ou porque o foi de forma ineficiente.
O que não falhou foi o "mimetismo social" que ensinou a crueldade sem limites a esses adolescentes. O que não falhou foi o exemplo da sociedade contemporânea que tem pautado as relações interpessoais pela perversidade, pelo ódio, pela obtenção do prazer doentio através da dor alheia, nestas selvas de betão armado. O que não falhou foi a indiferença e a negligência dos adultos responsáveis pela sua educação, que deixaram estes miúdos (e quantos outros mais?) à solta, sem outra lei a não ser a imitação da violência, observada aqui e ali, ou sentida na pele, sem outra vontade a não ser a de experimentar o poder efémero de maltratar alguém tão indefeso como eles um dia estiveram. Tal como as personagens de O Deus das Moscas, estes "miúdos" limitaram-se a reproduzir, sem restrições de consciência (porque ela não foi suficientemente treinada fazer a auto-censura), certos padrões de comportamento que foram observando ao longo da sua, ainda curta, existência. E imitaram-nos até às últimas consequências - a morte.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Lindo!


Acabei de ver na Sic-Notícias. Um grupo de avós, nos EUA, ofereceu-se para substituir os netos em serviço no Iraque. "Nós já vivemos as nossas vidas", dizia uma delas, "não nos importamos de morrer por eles, que têm ainda a vida toda para viver. Estamos fartas de assistir a funerais de soldados." Outra declarava estar ainda em plena posse das suas faculdades mentais, sendo muito capaz de efectuar trabalhos de secretariado.

Com efeito, já é do conhecimento público o esgotamento das tropas em serviço no Iraque:

"(IAR-Noticias) 26-En-06 Sobrecargados de tareas debido a las frecuentes rotaciones a Irak y Afganistán, el Ejército se ha convertido en una "fuerza verde frágil" que pronto podría colapsar a menos que pronto haya alivio, de acuerdo con un estudio hecho para el Pentágono.Andrew Krepinevich, oficial retirado del Ejército que escribió el informe gracias a un contrato con el Pentágono, concluyó que el Ejército no puede continuar destacando a más soldados a Irak como lo ha estado haciendo y así acabar con la resistencia. También indicó que la decisión que el Pentágono anunció el diciembre, de comenzar a reducir las fuerzas militares en Irak este año, fue motivado en parte porque se dieron cuenta de que el Ejército estaba demasiado sobrecargado de tareas. [...] El reporte pronostica problemas en el reclutamiento de nuevas tropas y en la retención de las existentes ante las repetidas giras internacionales y la falta de equipo vital. http://iarnoticias.com/noticias_2006/nor...euu_26en06.html

Perante o arrastar ad aeternum de uma guerra que já tinha sido dada como finda poucos meses após o seu início, na cerimónia mediática de Bush a bordo de um porta-aviões, eis que estas bravas mulheres, inspiradas pelo exemplo das avós e mães argentinas da Praça de Maio, decidem tomar a dianteira. Para defenderem os netos contra os desmandos da administração do seu país (que por causa do petróleo e outros interesses geo-estratégicos vai esgotando o capital humano mais jovem de que dispõe) estas mulheres admitiram, sem se importarem, a hipótese de serem presas e, quem sabe, tratadas pela comunicação social como loucas. Presas já foram. Será uma grande hipocrisia se o seu gesto for silenciado, por inconveniente, e difundido pelos media como um mero fait-divers. Mas não me espantaria nada que isso acontecesse, pois já nos vamos habituando ao modus operandi destes senhores-das-guerras-"cirúrgicas"-para-exportar-democracias-empacotadas-que-sirvam-os-seus-interesses. Por isso, antes que aconteça, quero render-lhes aqui a minha mais sincera homenagem. Às avós, claro!

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Azul V


Pipeline

sábado, fevereiro 11, 2006

Cartoons, Petróleo e Energias Alternativas

As reacções exacerbadas de grupos fundamentalistas islâmicos à publicação das caricaturas de Maomé no diário dinamarquês “Jillands Postem”, em 30 de Setembro de 2005, e sua republicação on-line no jornal católico norueguês “Magazinet”, em 10 de Janeiro de 2006, vieram reacender, aparentemente, a “velha” polémica do “Choque Civilizacional”, mesmo já depois desta tese – que assenta numa dicotomia simplista do tipo “Nós e os Outros” - ter sido em parte renegada pelo seu autor (Huntington).
Com efeito, assistimos nestas últimas semanas ao esgrimir de argumentos, defendendo, de um lado, a “liberdade de expressão” – apanágio das culturas ocidentais de cariz democrático, de outro, o respeito pelas convicções religiosas e valores culturais de grupos fundamentalistas que renegam esses e outros direitos em prol de um Islão uno e indivisível. Como uma pegajosa mancha de óleo, alastram as publicações dos cartoons um pouco por toda a Europa e também via internet, ganhando honras de destaque no Museu Virtual do Cartoon. Em resposta, por todo o mundo islâmico, desde a Palestina ao Irão, Síria, Arábia Saudita e Afeganistão, multiplicam-se atentados às embaixadas da Dinamarca, Noruega e Áustria (entre outras), manifestações de rua com o espezinhar de bandeiras do costume.
E o “braço de ferro” entre a democracia ocidental e o fundamentalismo islâmico começa a fazer vítimas mortais e despedimentos, à mistura com pedidos oficiais de desculpas, por parte do ministro norueguês dos Negócios Estrangeiros (e um jogo diplomático de outros, nomeadamente da administração Bush, a condenar a publicação dos cartoons), numa tentativa, já desesperada, para conter os ânimos. O diário “Hamshahri”, em Teerão, lança um concurso internacional de cartoons sobre o Holocausto, com o argumento da “liberdade de expressão” evocado pelos dinamarqueses e pela maioria da opinião pública “Ocidental” (que neste particular parece unir esquerdas e direitas). Mas ao mesmo tempo que tenta responder na mesma moeda (o que até seria legítimo) o Irão corta relações comerciais com a Dinamarca.

A questão impõe-se: poderá a Europa responder a um eventual embargo à importação dos seus produtos com um embargo à importação de petróleo? Não pode. Isso seria pôr em causa todo o estilo de vida hiper-consumista a que nos habituámos. Enquanto as energias alternativas não forem economicamente viáveis, a nossa “Civilização Ocidental” estará sempre assente sobre uma mancha escorregadia de crude – e este parece ser o cerne da questão em todo este conflito.
Mas será que não se vislumbra já no horizonte uma alternativa viável aos combustíveis fósseis? Será este conflito uma questão "Civilizacional", ou terá causas económicas subjacentes?

Pelo ciber-espaço circulam as mais variadas opiniões, ora condenando abertamente as reacções dos fundamentalistas islâmicos, numa óptica radical, ora tentando perceber, numa óptica marcada pelo “politicamente correcto”, se é ou não igualmente condenável a atitude “provocatória” do cartoonista dinamarquês que devia ter previsto o efeito catastrófico dos seus desenhos de qualidade estética discutível.

Mas de um lado e de outro, vão emergindo, cada vez mais nítidas, as suspeitas: o que parecia ser apenas um “fait-divers” aproxima-se, a passos largos, de um conflito internacional de grandes proporções. Terão sido as publicações destes cartoons apenas um pretexto de grupos americanos e judeus para acirrar os ânimos contra o mundo islâmico, com a pretensão de envolver a Europa nas suas guerras? Tal parece ser a mensagem que circula, via e-mail, entre os cibernautas indonésios, por exemplo, segundo o “Washington Post”: A few text messages and e-mails have been circulating, including one that reads: "The Danish cartoons are a design by the Jews and Americans to drive a wedge between Europe and the Islamic world." Mas as mesmas dúvidas se colocam, também, do outro lado da “barricada”: será esta reacção extremista dos grupos islâmicos proporcional à “provocação” recebida, ou não terão usado a indignação perante os cartoons como um pretexto para uma espécie de “cruzada anti-ocidente”? “Several people interviewed in Saudi Arabia said they were getting five or six text messages a day on the cartoon issue.” (W.P.) Ao que parece, a sua publicação num jornal egípcio, há alguns meses, não despertou grandes reacções no mundo islâmico. Só agora...

Recuando um pouco no tempo, há poucos anos, foi notícia no “Público” uma coligação da Comissão Europeia com países e regiões interessados em desenvolver projectos no âmbito das energias renováveis. Na esteira do “Protocolo de Quioto” e da “Cimeira de Joanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável”, a União Europeia pretende “atingir 15 por cento até 2010 de energias renováveis como a solar e a eólica no consumo de energia mundial”. O curioso nisto é que o projecto da UE “mereceu a reprovação dos Estados Unidos, que o consideram irrealista, e da OPEP, que pretende defender o seu petróleo.” E é verdade que a Europa se encontra já empenhada em vários projectos de desenvolvimento de fontes alternativas de energia, que vão desde a reconversão das centrais nucleares até à exploração da energia eólica. Os recentes investimentos europeus no desenvolvimento da fusão nuclear (em vez da tradicional fissão) e a construção de um gerador eólico gigante, na Dinamarca, bem como outros projectos em curso, são prova desse empenho.

Assim sendo, será isto tudo um produto do tal “choque civilizacional”, amplificado pela globalização dos Media e pela sua acessibilidade através da Internet, ou não será antes o canto desesperado do cisne, por parte dos países produtores e exportadores de petróleo, num último medir forças antes que se esgotem as suas reservas e se descubram formas alternativas viáveis de obter energia? E os EUA? Qual será o seu verdadeiro papel nesta polémica toda?

Enquanto isso, a ONU vai nomeando comissões para analisar a situação, a ver se pode ou não integrar este conflito no dossier sobre o “racismo”...

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Hipocrisia

Hoje, Teresa e Lena, duas mulheres portuguesas decidiram desafiar as nossas "raízes históricas e culturais muito consolidadas" (expressão de Pedro Duarte, deputado do PSD) e legalizar, pelo casamento, a sua relação amorosa, esbarrando, obviamente, com os impedimentos legais em vigor.
Diz a Constituição da República Portuguesa, no artigo 13º, que é proibida "qualquer discriminação com base na orientação sexual. Diz o Código Civil, no artigo 1577º que "o casamento só pode ser celebrado entre pessoas de sexo diferente". Alega Alexandra Teté, da Associação Mulheres em Acção, que "A heterossexualidade é uma nota essencial do casamento, que se funda na conjugabilidade homem-mulher e na fecundidade potencial dessa união. [e que] O casamento é uma instituição reconhecida pela sociedade como fundamental por ser o lugar natural da geração, formação da personalidade e educação das crianças. É a fonte primária do capital social [...] [mas]qualquer pessoa pode casar, independentemente da sua orientação sexual." (in: Público, Quarta-Feira, 1/2/16)

Ficamos, então, esclarecidos quanto aos fundamentos e às possibilidades do casamento: trata-se de um acto legal enraizado na tradição histórica e cultural e lugar natural da geração, ou seja, da produção de descendência, e que os homossexuais podem casar, mas não entre si.
Ora, se até o Papa, na sua Enclítica "Deus Caritas Est" parece legitimar (com alguns séculos de atraso, mas pronto!) o eros, ou seja, a sexualidade, no casamento (monogâmico e heterossexual) sem ter por único objectivo a fecundação, mas como resultado de uma divinização do amor humano e de uma entrega mútua entre o casal, a lei portuguesa, pelo menos na interpretação que lhe é dada por Alexandra Teté, parece estar a ser mais papista do que o papa, ao fundamentar-se na questão da natural fertilidade: como os casais formados entre pessoas do mesmo sexo não podem naturalmente gerar filhos, não lhes é permitido que casem. Mas a Igreja Católica já legitima o sexo no casamento sem a obrigatoriedade de gerar descendência, o que, bem vistas as coisas, legitima a entrega mútua dos corpos e "almas" nos casamentos estéreis. Logo, se a definição de casamento se fundamenta na sua "potencial fecundidade", como diz Alexandra Teté, que fazer aos casamentos heterossexuais estéreis? Vamos pô-los em causa também e dar-lhes outro nome?
Logo, tudo indica que a fertilidade, ou a sua ausência, não pode ser evocada para proibir casamentos entre pessoas do mesmo sexo, tendo em conta o que se passa com muitos casais heterossexuais estéreis.
Resta, pois, o argumento da tradição. Todos sabemos que o Estado Português é laico, mas a nossa tradição cultural é de matriz judaico-cristã. E se a lei se funda nessa matriz cultural, então está explicado porque é que não é legítimo que os homossexuais se casem entre si... Curiosamente, como muito bem afirma Alexandra Teté, "qualquer pessoa pode casar, independentemente da sua orientação sexual", o que significa que, para poder casar, em conformidade com o Código Civil, um/uma homossexual terá de o fazer com alguém de outro sexo. Ou seja, a nossa matriz cultural judaico-cristã considera ilegítimo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas aceita, pacificamente - e a lei sustenta - que alguém se case, sem amor, com outra pessoa de sexo diferente do seu e arranje um/a amante do mesmo sexo para poder ser feliz... E viva a hipocrisia!

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