quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Hipocrisia

Hoje, Teresa e Lena, duas mulheres portuguesas decidiram desafiar as nossas "raízes históricas e culturais muito consolidadas" (expressão de Pedro Duarte, deputado do PSD) e legalizar, pelo casamento, a sua relação amorosa, esbarrando, obviamente, com os impedimentos legais em vigor.
Diz a Constituição da República Portuguesa, no artigo 13º, que é proibida "qualquer discriminação com base na orientação sexual. Diz o Código Civil, no artigo 1577º que "o casamento só pode ser celebrado entre pessoas de sexo diferente". Alega Alexandra Teté, da Associação Mulheres em Acção, que "A heterossexualidade é uma nota essencial do casamento, que se funda na conjugabilidade homem-mulher e na fecundidade potencial dessa união. [e que] O casamento é uma instituição reconhecida pela sociedade como fundamental por ser o lugar natural da geração, formação da personalidade e educação das crianças. É a fonte primária do capital social [...] [mas]qualquer pessoa pode casar, independentemente da sua orientação sexual." (in: Público, Quarta-Feira, 1/2/16)

Ficamos, então, esclarecidos quanto aos fundamentos e às possibilidades do casamento: trata-se de um acto legal enraizado na tradição histórica e cultural e lugar natural da geração, ou seja, da produção de descendência, e que os homossexuais podem casar, mas não entre si.
Ora, se até o Papa, na sua Enclítica "Deus Caritas Est" parece legitimar (com alguns séculos de atraso, mas pronto!) o eros, ou seja, a sexualidade, no casamento (monogâmico e heterossexual) sem ter por único objectivo a fecundação, mas como resultado de uma divinização do amor humano e de uma entrega mútua entre o casal, a lei portuguesa, pelo menos na interpretação que lhe é dada por Alexandra Teté, parece estar a ser mais papista do que o papa, ao fundamentar-se na questão da natural fertilidade: como os casais formados entre pessoas do mesmo sexo não podem naturalmente gerar filhos, não lhes é permitido que casem. Mas a Igreja Católica já legitima o sexo no casamento sem a obrigatoriedade de gerar descendência, o que, bem vistas as coisas, legitima a entrega mútua dos corpos e "almas" nos casamentos estéreis. Logo, se a definição de casamento se fundamenta na sua "potencial fecundidade", como diz Alexandra Teté, que fazer aos casamentos heterossexuais estéreis? Vamos pô-los em causa também e dar-lhes outro nome?
Logo, tudo indica que a fertilidade, ou a sua ausência, não pode ser evocada para proibir casamentos entre pessoas do mesmo sexo, tendo em conta o que se passa com muitos casais heterossexuais estéreis.
Resta, pois, o argumento da tradição. Todos sabemos que o Estado Português é laico, mas a nossa tradição cultural é de matriz judaico-cristã. E se a lei se funda nessa matriz cultural, então está explicado porque é que não é legítimo que os homossexuais se casem entre si... Curiosamente, como muito bem afirma Alexandra Teté, "qualquer pessoa pode casar, independentemente da sua orientação sexual", o que significa que, para poder casar, em conformidade com o Código Civil, um/uma homossexual terá de o fazer com alguém de outro sexo. Ou seja, a nossa matriz cultural judaico-cristã considera ilegítimo o casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas aceita, pacificamente - e a lei sustenta - que alguém se case, sem amor, com outra pessoa de sexo diferente do seu e arranje um/a amante do mesmo sexo para poder ser feliz... E viva a hipocrisia!

3 Comments:

At 4:41 da tarde, Blogger nnannarella said...

Portentoso! Não sei como cá cheguei... mas sei que cheguei bem. :)

 
At 5:00 da tarde, Blogger André . أندراوس البرجي said...

Concordo com tudo, mas há um pormenor que queria sublinhar: a Igreja não tem de meter o bedelho num assunto que não lhe diz respeito. Teria esse direito se se pretendesse que o casamento homossexual fosse abençoado pela ICAR (ou qualquer outra confissão). Mas o que se pretende é um casamento CIVIL. Logo, a ICAR (ou qualquer outra confissão) não nada que ver com isto, nem tem de, nem pode, meter o bedelho. Felizmente vivemos num estado laico.

 
At 5:25 da tarde, Blogger lena b said...

Já agora, coloco aqui também o esclarecimento. :-)

Apenas evoquei a posição da igreja católica como termo de comparação- e porque na altura estava fresco o assunto da encíclica - para realçar o absurdo da opinião de Alexandra Tété. Também acho que não compete à igreja pronunciar-se sobre um casamento civil...

 

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