segunda-feira, novembro 20, 2006

Azul XXII



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segunda-feira, novembro 06, 2006

SÃOZINHA

Se há diminutivos despropositados, este é, seguramente, um desses. Que figura imaginamos, ao ouvir um nome assim? Decerto, uma velhinha simpática, de rosto frágil e olhar leve como a seda, sentada à janela a tecer um interminável naperon, ou a servir bolinhos de canela às amigas, com um chá fumegante a temperar conversas de outros tempos. Talvez um daqueles seres sem idade, com ar virginal, que todas as tardes vagueiam pelos jardins públicos a distribuir milho aos pombos, pedaços de pão molhado aos patos e doces às crianças… Mas não era nada disso. A única Sãozinha que conheci não poderia ser mais diferente desse retrato diáfano que o próprio nome evoca. Era a minha professora da terceira classe. Uma mulher de muito peso, rosto endurecido pelos calores excessivos de África e uma voz de fazer tremer as pedras, quando algum de nós errava a prova dos nove nas contas de dividir. Em suma, um verdadeiro filme de terror em forma de gente.
Os tempos eram outros, bem se sabe, e a disciplina férrea, que a famosa régua de cinco olhos se encarregava de relembrar, fazia de qualquer professor um pequeno déspota, no seu reino de meia dúzia de metros quadrados. Consciente do seu pequeno poder, e da nossa insignificância de meros aprendizes, Sãozinha cumpria com tal esmero os seus dotes de mestre-escola que quase nos víamos transportados, diariamente, ao universo de um David Coperfield ou de um Oliver Twist em versão lusitana. Todos os dias, mas mesmo todos, ela exigia honras militares ao entrar na sala de aula, com a turma em sentido a cantar o hino nacional. E ai de quem se enganasse na letra! O seu olhar varria logo a sala, como um furacão, a descobrir o autor da fífia que nesse dia ficava sem intervalo, não sem antes tremer que nem varas verdes perante a explosão de cólera:
- Quem é que não sabe ainda a segunda estrofe?! - E depois, bem junto aos ouvidos, com uivos lancinantes: - Andaste a beber o quê ao almoço? Estás surdo? Quantas vezes já te disse que depois de “entre as brumas da memória” é “ó Pátria sente-se a voz dos teus egrégios avós”? “Egrégios avós”, entendeste?! – Egrégios era uma palavra que se recusava a entrar no vocabulário de uma criança de oito anos, mas ela pouco se importava com isso. Se ao menos soubéssemos o significado de “egrégios”… Mas ninguém se atrevia a perguntar. Aliás, ninguém mais teve dúvidas depois que ela inaugurara o seu método infalível para explicar sinónimos, dias antes, com um tremendo safanão na carteira de um colega nosso, que aterrou junto ao quadro: - Já percebeste?! Agora vais ficar ali, virado para a parede, a repetir “safanão é empurrão” até eu te dizer para parares, estamos entendidos?
Com uma professora assim, quem é que se atrevia a dizer que não sabia, ou a pedir para ir à casa-de-banho a meio da aula ou a deixar por fazer a quantidade astronómica de cópias, problemas e contas que iam todos os dias para casa como TPC? Ninguém! Enquanto os nossos colegas de outras escolas (e das escolas de outros tempos mais recentes) jogavam à bola no final da tarde, ou mesmo de manhã, nós ficávamos em casa, de lápis em riste, a preencher páginas e páginas da sebenta. Nos fins-de-semana e férias escolares, os trabalhos duplicavam, triplicavam, quadruplicavam, consoante o estado de humor de Sãozinha.
A sua fama de bruxa malvada estendia-se longe, até aos bairros da mata, de onde vinham, às vezes, grupos de crianças, descalças e de calções remendados, pedir esmola de porta em porta. À porta dela ninguém parava. Assim que algum deles avistava a sua silhueta na janela, dava meia volta e sumia-se numa qualquer rua paralela, não fosse o seu olhar ter feitiço e transformá-los em cágados ou sapos. Para cúmulo do azar, eu morava mesmo em frente e, sabe-se lá por que conveniências de adultos alheios aos terrores infantis, ia todos os dias para a escola, que ficava a cem metros da casa, no carro de Sãozinha, com ela a conduzir. Para isso, tinha de estar, pontualmente, à sua porta, meia hora antes de sairmos. Era a sua exigência para nos servir de chauffeur improvisado. A razão de tamanha espera só podia ser mais uma prova do requinte da sua malvadez, pois morávamos tão perto que dois segundos bastariam para nos encontrarmos.
Ao fim de algumas semanas de aulas, Sãozinha começou a entrar nos meus sonhos. Toda ela era uma boca enorme, escancarada, a perguntar-me: - De quem são aqueles retratos que estão em cima do quadro? – e eu não sabia. Depois vinha uma régua enorme atrás de mim, enquanto eu me debatia por debaixo dos lençóis, a tentar subir à árvore mais alta do quintal para escapar ao castigo. Todas as noites o mesmo sonho. Quando conseguia subir à árvore, lá de baixo, Sãozinha olhava-me, qual medusa, a tentar transformar-me em pedra. E era como uma pedra que eu me levantava, no dia seguinte, de olhos doridos e ar macilento, a caminho de um pequeno-almoço que me parecia cada vez mais insípido. Já nem a manteiga derretida, sobre as torradas, me fazia crescer água na boca. Ao almoço, os talheres pareciam-me demasiado pesados para os levantar com elegância e desistia de comer. Todas as minhas energias tinham ficado no tronco da árvore que subia à noite, sem cessar, para fugir ao feitiço mau de Sãozinha. Olhava para o relógio, ansiosa, a desejar que parasse e nunca mais viesse a hora de ir para a sua porta à espera da boleia, mas a hora chegava, pontualmente, todos os dias, e eu lá ia, cabisbaixa, a arrastar os pés no chão. Imaginava-a dentro de casa a tirar escamas de gibóia do corpo. A meia hora que tínhamos de esperar devia ser para isso, para ela se poder transformar em gente e sair à rua…
Há quarenta anos atrás, havia muitas Sãozinhas destas, zelosas cumpridoras do seu dever (e gosto) de torturar pupilos incautos. Daí que ande muita gente a remoer, ainda hoje, velhos traumas, por incapacidade de os sublimar. Vá-se lá saber que professores tiveram os nossos actuais ministros, da geração dos quarenta aos sessenta, para andarem tão ressabiados...

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