sábado, abril 29, 2006

Haverá cianeto que chegue?

Um relato fascinante, na primeira pessoa, dos últimos dias no bunker de Hitler, sobre a experiência do desmoronar da fantasia macabra que foi o terceiro Reich e o sonho do "super-homem". Na RTP 2, entrevistada por André Heller, Traudl Junge, uma das secretárias de Hitler, revelou como viveu numa espécie de limbo, ou "Ângulo Morto", protegida das informações sobre os horrores do holocausto nazi, pela figura tutelar de um líder que, na intimidade, era visto como um homem cordial e simpático e uma espécie de substituto (sem o saber) do pai que nunca conhecera. Este documentário realizado em 2002 e agora transmitido pela primeira vez na televisão portuguesa (noite de sexta-feira) mostra como uma boa parte da juventude alemã foi seduzida pela ideologia do Nacional-Socialismo e, com isso, ajudou a construir o pesadelo onde os maiores horrores pareciam justificáveis por uma ideia transcendente de construir um império alegadamente "perfeito". Fora do bunker, as bombas, cada vez mais próximas e certeiras, anunciavam o fim dessa fantasia. Enquanto isso, lá dentro, o tempo deixara de fazer sentido e a alienação instalara-se nos gestos, nas conversas, nas expectativas de salvação através do suicídio, nos casamentos e festas com que, em desespero, se procurava agarrar a vida inevitavelmente condenada. Terá havido remorsos? Não sabemos se o silêncio de Hitler, nos últimos dias, o indicaria. Essa parte da História ficará sempre por contar, pois a lucidez possível, se é que existiu, estava toda contida na cápsula de cianeto e no gesto suicida. Para Traudl Junge, a salvação veio depois, ao visitar um memorial em honra de uma rapariga assassinada por se ter oposto ao regime. Só nessa altura esta secretária percebeu que a juventude e ignorância não servem de alibi a ninguém e que, ao desempenhar o que julgara ser apenas um trabalho honroso, pactuara, sem o saber, na construção do pesadelo.
Quando vemos, agora, a proliferação de grupos de extrema-direita, infiltrados nas claques futebolísticas ou em manifestações pelas ruas, exibindo suásticas e saudações nazis, perpetuando a violência xenófoba e racista, apetece perguntar: para que serviu a História? Haverá cianeto que chegue para resgatar, de novo, a lucidez perdida?

3 Comments:

At 4:12 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Não vi o doc.infelizmente, mas o teu relato está igualmete fascinante. É indispensável não esquecer estes acontecimentos.

 
At 10:58 da tarde, Blogger lena b said...

Sulamita:

A entrevisa fi realmente impressionante. A propósito dos planos que eles faziam, nos últimos dias no bunker, Traudl Junge conta que um dos temas mais frequentes de conversa era sobre qual seria a melhor forma de se suicidarem. A mulher do Goebbels (não me recordo do nome), afirmou preferir o cianeto ao tiro de revólver porque "queria ser um cadáver bonito". Os filhos deles - eram 8 - foram todos mortos com cianeto porque os Goebbels não concebiam a ideia de uma Alemanha sem o nacional-socialismo... :(

Eu acho que os grupos que agora perfilham a ideologia neo-nazi o fazem motivados por ideias xenófobas segregacionistas e seduzidos pelo folclore das suásticas e braços erguidos, mas totalmente ignorantes acerca do que representou, de facto, o nazismo. Cá para mim, deviam ser todos obrigados a visitar Aushwitz. :(

Lena b

 
At 11:34 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Bom dia.
cliquei no comentário que deixou no blogatelas e vim parar ao seu blog. Fui lendo, lendo e quando cheguei aqui, fiquei arrepiada.
Eu vivia na província, durante a ditadura, e sei como foi fácil «lavar cabeças» com silêncios e mentiras.
Pensava que com a facilidade de comunicação que os media implementaram isso já não podia voltar a acontecer. Tristemente, vemos que sim. Por isso, a minha preocupação, mais que «dizer» é convidar os jovens a pensar pelas próprias cabeças; convidá-los a questionar, a ter uma visão crítica das fontes.
A solidão humana é uma coisa tremenda por isso um mau encontro, numa passagem pelo deserto da adolescência, pode ser fatal.
Enfim, acho que me baralhei mas a culpa é sua porque me deixou sem palavras.
Continuação de um bom blog.

 

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