quarta-feira, abril 05, 2006

O progresso regressivo como um sintoma da pós-modernidade

Há anos que desconfiava e hoje, ao ler um artigo intitulado "Umberto Eco e o mundo que avança 'às arrecuas'", confirmei as minhas suspeitas: neste mundo "pós - moderno", o ideal de "progresso" humano abriu falência e deu lugar ao retrocesso.
A propósito do último livro de Umberto Eco, A passo di gambero, o Courrier internacional desta semana apresenta uma entrevista ao investigador e romancista de O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault, entre outros.
Com efeito, quase nem é preciso ler o livro para constatar a veracidade e pertinência do título. Basta folhearmos os jornais, ou fazer um zapping pelos noticiários, para verificarmos os sintomas desse retrocesso na proliferação de movimentos neo-nazis, da escravatura, das guerras declaradas e banalização de todos os tipos de violência, de fundamentalismos religiosos - muçulmanos e cristãos - ou no recrudescimento de "valores" e "saberes" há alguns anos consideradas retrógrados e ultrapassados, como o culto da virgindade e o criacionismo, por exemplo.
Explica Umberto Eco, na entrevista, "Sempre que houve acelerações demasiado bruscas na História, constatou-se um fenómeno de acção-reacção. [...] Após a Revolução Francesa, houve várias décadas de restauração. Depois, o séc. XX foi o da velocidade e aceleração. Algumas tendências, que tinham estado, por assim dizer, a chocar sob as cinzas durante séculos, explodiram de repente. Estou a pensar na libertação dos povos oprimidos, na emancipação das minorias de todo o tipo - sociais, étnicas, sexuais -, nos jovens que se libertaram da autoridade familiar, uma concepção mais flexível da célula familiar, etc. Pode-se pensar o que se quiser dessas «libertações»; mas uma coisa é certa, surgiram abruptamente. Faixas inteiras do tecido social nunca as aceitaram. Bastou que houvesse forças a dar-lhes voz para traduzir essas síndromes de recusa (Bush nos Estados Unidos, Haider na Áustria, Berlusconi e a Liga do Norte em Itália) e se desse esse retrocesso."
O paradoxo do mundo "pós-moderno" reside precisamente no facto de, com a perda da noção de historicidade, que dava uma ilusão de continuidade - fazendo-nos acreditar que ao modernismo se seguiria necessariamente uma espécie de ultra-modernismo - tudo se baralhou. "Pós-moderno" significa, pecisamente, na primeira acepção do termo (a de Frederico de Onís, 1930, apud Perry Anderson, em: As Origens da Pós-Modernidade, 1999), um refluxo conservador dentro do modernismo. Assim sendo, tudo indica que, ao ideal iluminista da Razão, que serviu de fundamento à ideia de progresso, parece seguir-se, nos tempos que correm, uma hiper-valorização da irracionalidade desenfreada, a alicerçar não apenas o hedonismo, o consumo, o culto da imagem, o sucesso material a qualquer preço, mas também o regresso a um conservadorismo que faz inflectir o ideal de progresso numa espécie de "inversão de marcha", fazendo renascer e proliferar certos ideais banidos (ou pelo menos reduzidos a uma expressão minoritária) pela razão. Comportamentos irracionais sempre existiram, com maior ou menor expressão, ao longo da História. O problema é quando essa irracionalidade surge sancionada pelos poderes instituídos, se infiltra nos aparelhos de Estado e dita as leis, fazendo mergulhar o mundo actual, à escala global - e não apenas os fundamentalistas islâmicos, como nos apraz pensar - , numa espécie de Idade das Trevas renascida, mas muito mais mortífera do que esta, porque dotada de uma capacidade tecnológica muito mais brutal.

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