domingo, março 19, 2006

Filhos de um deus menor

Alá não é obrigado é o título de um romance desencantado de Amadou Kourouma sobre o envolvimento de crianças nos conflitos armados da Libéria e Serra Leoa. No relato do narrador, criança-combatente à deriva pelas várias facções em confronto, assistimos ao desvendar de um universo dantesco, no meio do qual a miséria humana, com tudo o que contém de mais bárbaro e cruel, quase confere à morte uma função libertadora. E contudo, é banal a situação relatada nesse romance, se tivermos em conta a quantidade de países que, no passado e no presente, recrutam crianças e adolescentes para a guerra.
No Relatório Global sobre Crianças-Soldado de 2004, publicado pela Coligação Mundial Contra o Uso de Crianças Soldado, aparece-nos uma lista incrível de cerca de duzentos países, não apenas do chamado “terceiro mundo” mas também do “primeiro”, nos quais as crianças e jovens já foram envolvidos de forma activa em conflitos violentos e guerras declaradas. Desde os célebres Marines, recrutados aos dezassete e dezoito anos para o Iraque e Afeganistão, até às crianças Mujahedin, aos meninos e meninas combatentes na Libéria, Ruanda, Uganda, Serra Leoa, Costa do Marfim, Angola e Colômbia, para citar apenas alguns exemplos, são milhares de pessoas a quem o futuro foi roubado, à conta da geoestratégia e da economia, de conflitos étnicos ou, simplesmente de interesses hegemónicos obscuros. Integradas à força nas várias facções beligerantes, as suas tarefas, para além do combate propriamente dito e de operações de vigilância, incluem o transporte de equipamento e munições. Para as raparigas, a escravatura sexual também faz parte de uma guerra na qual nada decidiram.
Quem decide são sempre os “senhores” instalados no poder ou os que os querem derrotar. E quando terminam os conflitos, muitas vezes essas crianças, as que sobrevivem, recrutadas à revelia de todos os direitos, ficam na situação marginal de meninos e meninas de rua, uma vez que, oficialmente, quase nenhum governo assume a sua existência. Sem beneficiarem de qualquer programa de reintegração na sociedade civil, resta-lhes ir sobrevivendo precariamente, à conta do que aprenderam na guerra, perpetuando a violência de que foram vítimas. Aos traumas da guerra, que implicara as mais variadas formas de abuso, junta-se a exclusão social, numa cadeia de causas e efeitos que as torna prisioneiras de um tempo errado, de um lugar errado, de uma existência errada. A cumplicidade dos governos dos países ocidentais, com a venda de armas e treino militar, faz deles também co-agentes na manutenção deste estado de coisas. E o silêncio da opinião pública internacional não iliba ninguém de responsabilidades.
Costuma dizer-se que as crianças de hoje são os homens de amanhã. Tal sentença, apesar da sua verdade tautológica, encerra um triste presságio, se pensarmos, à escala global, nestas crianças que temos hoje e no tipo de homens que elas serão no futuro, se lá chegarem...

1 Comments:

At 9:42 da tarde, Blogger nnannarella said...

É verdade. E o que dói mais é pensar que a medicina e os preconceitos contra o aborto preservam a vida de crianças, para depois as condenarem a ser carne para canhão de uma série de interesses e (a)moralidades.

 

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