terça-feira, março 28, 2006

Duas vozes

Enquanto o primeiro ministro, José Sócrates, embandeirava em arco no CCB com as "suas" 333 medidas - Simplex para desburocratizar o país e colocá-lo ao nível do chamado "primeiro mundo", provavelmente acrescentaram-se mais alguns números nas estatísticas macabras que "teimam" em fazer-nos lembrar que o país não vive num endereço electrónico.

Há dias, o alerta de Luís Villas-Boas, director do Refúgio Aboim Ascensão, para a "situação de emergência infantil" que se vive em Portugal, dava-nos conta do número astronómico de "110 mil crianças em perigo" por dia, que "devem ser alvo de toda a atenção para que não se transformem em vítimas.[...] Luís Villas-Boas considera que em Portugal "temos um acolhimento doente e uma adopção anestesiada" e que é "necessário repensar todo o sistema de acolhimento nacional". O ex-presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei de Adopção afirma que, antes de mais, é preciso parar com "o excesso de acolhimentos depositários", quer em famílias, quer em instituições. "Não se deve ter crianças em instituições mais do que o tempo mínimo necessário, que geralmente é de um ano ou dois", diz. "As crianças que vivem 15 anos da sua vida em instituições ficam deprimidas e com graves problemas emocionais", considera este psicólogo" (fonte: DN)

À primeira vista, parece que o "choque tecnológico" com que o primeiro ministro pretende aligeirar a vida contributiva e institucional dos cidadãos - dos que têm acesso a computadores e sabem como os utilizar, entenda-se - nada tem que ver com a situação relatada por Villas-Boas. Mas se pensarmos que ambas as situações - a real e a anunciada - coexistem no mesmo país,e que o alerta do director do Refúgio nos desperta para a necessidade de intervenção urgente, é caso para nos interrogarmos acerca dos conceitos de cidadania e civilização em que se fundamenta o anúncio espectacular do nosso primeiro ministro e da sua noção das prioridades do país.

Com isto, não pretendo dar a ideia de que a desburocratização na Administração Pública não seja uma medida necessária, mas, convenhamos, para quem vive ainda em casas sem luz elécrica, com a antiga quarta classe ou mesmo sem ela, nos confins do Portugal profundo, ou mesmo nos arredores das grandes cidades, essas medidas "Simplex" de nada servem. Não serão essas pessoas também cidadãos de pleno direito?

E as crianças vítimas de maus tratos, ou eternamente depositadas em instituições, à espera de uma família adoptiva, não merecerão também tratamento de cidadania? Será que o nosso primeiro ministro se prepara, também, para anunciar novas medidas de desburocratização nos processos de adopção? E novas regras que regulamentem o trabalho das Comissões de Protecção de menores em risco, que as obriguem a olhar primeiro para as crianças e só depois para os papéis, para que não se verifiquem mais tragédias como as que todos conhecemos, de crianças "acompanhadas" que morrem por terem sido brutalmente espancadas depois da visita dos técnicos?

A avaliar pelos destaques dados pelos Media, parece que a "desburocratização", por enquanto, visa apenas facilitar a informação, com o acesso gratuito ao Diário da República, a cobrança de impostos e respectivas reclamações, os processos de matrícula (e aqui o anunciado pouca novidade traz em relação ao que já se pratica em muitas escolas) e outras "simplificações" na Administração Pública. E quanto às crianças em risco, cujo "acompanhamento" é muitas vezes deficiente em virtude da falta de comunicação entre as instituições, ou quantidade astronómica de relatórios e multiplicação de processos que deixa pouco tempo para se olhar a sério para elas, nada se sabe. A resolução desse problema não é urgente? Para quando, a concretização do apelo de Luís Villas-Boas, de que o "Estado e sociedade civil devem ser parceiros na protecção de menores"?

Com efeito, parece que à euforia das autoestradas e do betão, símbolo do "progresso" nacional que se seguiu à entrada de Portugal para a União Europeia, nos idos de oitenta (e que ainda vai dando uns frutos), segue-se agora a festa dos bites, sob a sombra "protectora" de Bill Gates e das suas "autoestradas da informação". Mais uma vez, a leitura dos indicadores de progresso é feita à conta de uma confusão cada vez maior entre civilização e tecnologia. Como se Portugal fosse apenas constituído por cidadãos votantes, bem comportados e instruídos, a viver em grandes centros urbanos e não - também - um país onde se maltratam crianças até à morte e onde a miséria humana é ainda a realidade diária de muita gente.

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