domingo, abril 09, 2006

O eterno conflito entre o saber académico e a escola da vida

O ser humano faz-se vivendo. Isto significa que o potencial de humanidade de que somos feitos é passível de transformação ao longo da nossa existência. E porque ninguém nasce já ensinado, tal constatação pressupõe que, para nos definirmos plenamente como seres humanos, precisamos de aprender a sê-lo. Mas aprender o quê e onde? Para uns, crentes no papel fundamental dos mestres e das instituições, o lugar de eleição para essa aprendizagem é a escola. Para outros, descrentes no sistema de ensino institucional, não existe melhor lugar para se aprender a ser gente do que a vida. Daqui resulta o eterno conflito entre a escola e a vida, com cada um a puxar para o seu lado, a valorizar a sua opção em detrimento da outra, que considera inútil, ou desajustada às suas necessidades. Mas há, de facto, coisas que só mesmo a escola pode ensinar e outras que só se aprendem vivendo, significando isto que existem razões parciais de ambos os lados desta contenda.
Aprender com a experiência da vida não é reproduzir, acriticamente, modelos de acção já cristalizados pelas rotinas tradicionais. Para trazermos algo de novo à nossa vida, e nos definirmos como pessoas diferentes dos pais ou avós, temos de arriscar o salto em frente e conseguir escolher entre as acções bem sucedidas e mal sucedidas, numa cadeia de experiências e erros, até encontrarmos o percurso certo. Isso implica, na quase totalidade dos casos, uma capacidade de análise e introspecção considerável e uma grande coragem para assumir os riscos inerentes à experiência. E também implica a realização de inferências, a fim de aplicarmos o que aprendemos numa situação, na resolução de futuros problemas que se afigurem semelhantes. No entanto, nem todas as situações admitem esse tipo de aprendizagem. Por exemplo, não é aconselhável experimentar-se atirar o carro de uma falésia para se saber qual vai ser o resultado. Esse saber, que dispensa a experiência, deriva do senso comum e também não é necessário andarmos na escola para o adquirirmos. Basta estarmos atentos.
Quanto ao saber institucionalizado, ele permite-nos queimar etapas, aprofundar as razões desta ou daquela situação e fazer previsões, muitas vezes, apoiadas no resultado de experiências anteriores, já registadas nos livros ou noutros suportes. Também aqui, para descobrirmos algo de novo, é necessário arriscar, experimentar, interrogar, testar e confirmar ou arrepiar caminho e ir por outro lado.
Ora, se a experiência e o risco são inerentes aos dois tipos de aprendizagem – a institucional e a vivencial - , bem como os processos mentais a eles inerentes – a dedução e a indução - então porque é que a escola e a vida parecem estar de costas voltadas uma para a outra? Porque é que algumas pessoas privilegiam o saber académico, considerando-o superior ao outro, porque implica um grande investimento e concentração ao longo de vários anos, feito muitas vezes, para os realmente aplicados, com prejuízo do lazer, do descanso e do convívio social, considerando o trabalho exclusivamente manual como insuficiente para a realização plena do indivíduo? E porque é que outras pessoas desvalorizam esse saber académico, por ser excessivamente teórico – dizem – e desajustado da vida real, e ainda por cima oneroso, quer em termos de tempo, quer financeiramente, e manifestam dificuldades em reconhecer a sua utilidade? Será apenas uma questão de má vontade de ambas as partes?
Talvez a resposta esteja, realmente, na frustração que uns e outros sentem. Os académicos, porque a sua dedicação à matéria em estudo (falo dos que estudam a sério, procurando compreender os assuntos e inovar, e não dos que se limitam a decorar fórmulas e citações, ou a cabular nos exames) muitas vezes os obriga a adiar para as calendas gregas certas experiências de vida, sentindo-se amputados de sensações que também são úteis. Os outros, porque até um dia desejaram saber mais, mas a vida trocou-lhes as voltas (falo dos que não tiveram hipótese de prosseguir estudos porque os filhos vieram cedo, ou porque nasceram num tempo em que a escola era só para alguns, e não daqueles que tiveram preguiça de estudar, ou se desviaram pela marginalidade) e obrigou-os a aceitar um trabalho pouco qualificado, rotineiro e fisicamente desgastante, privando-os da energia necessária ao trabalho intelectual. E assim, uns porque desejavam ter vivido mais, outros porque desejavam ter estudado mais, olham-se com desconfiança e, ao reconhecer nos outros a parte que lhes foi amputada, atribuem-lhes, por transferência, a responsabilidade de uma frustração que só a eles pertence e só a eles cabe resolver. Daqui resulta, invariavelmente, a maior parte dos conflitos entre “doutores” e “elecricistas”, ou entre “engenheiros” e “operários fabris”, por exemplo, para já não falar nos que opõem “artistas”, “cientistas” ou “filósofos” e “massas populares”, com estas últimas a clamar a altas vozes “vai trabalhar, malandro!” e os primeiros a bradar aos céus “santa ignorância!”.
A questão que fica sempre por resolver, nestes debates, é a única que vale a pena colocar: não serão ambos os saberes – o académico e o vivencial – necessários à formação do ser humano? Em vez de se considerarem superiores um ao outro, não serão esses saberes igualmente úteis e complementares? O senso comum manda responder que sim. Então porque é que se perpetua o conflito? Alguém sabe responder?

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