terça-feira, março 21, 2006

Uma casa portuguesa, com certeza...

Naquele dia o senhor José Silva chegou a casa esbaforido. Todos os seus gestos denunciavam uma irritação atroz. Abriu o portão ao pontapé, atirou a caixa das ferramentas para o canto da garagem, gritou impropérios ao gato, que vinha dar-lhe as boas vindas, com marradinhas felinas nas pernas. Lá da cozinha, a senhora Alice, alarmada com o barulho, exclamou:
- Credo, homem! Que é isso?
- Não me digas nada, mulher, não me digas nada, que eu hoje rebento!
A senhora Alice regressou, cabisbaixa, ao corte dos repolhos para a sopa, levantou os olhos para o alto e benzeu-se, rezando para que a tempestade amainasse. Mas não amainou. O senhor José Silva, Zé para os amigos, sentou-se no sofá e pegou no comando da televisão. O som, demasiado alto, assustou o gato, que desatou a fugir derrubando o candeeiro. Mais uma saraivada de gritos, cuja tradução exacta se torna impraticável sem bolinha ao canto do ecrã, fez aparecer em cena Marco Paulo, o filho mais velho, que tentava decorar o código da estrada para daí a três dias. A carta fora prenda dos seus dezoito anos. Mais valia ter vindo logo embrulhada em papel-fantasia sem ser preciso estudar e fazer aqueles exames, que tiravam todo o gozo de pegar no volante e desatar a abrir por aí... Contudo, a persistência sempre vence e, à terceira tentativa, o rapaz já estava a perceber algumas regras mais comuns.
- O que é que aconteceu? – perguntou da porta, com um pé dentro e outro fora, a preparar a fuga.
- Cala-te! – exclamou o senhor José, vermelho de fúria. – Amanhã não te levo à escola!
- Então porquê? - quis saber o filho.
- Então não é que um chico-esperto de um chui me mandou rebocar o carro? Anda um homem a trabalhar para isto!
- Então porquê?!
- Porquê?! Porquê?! Nesta terra já um homem não pode ir beber um café em paz, ao meio da tarde... Se eu fosse doutor, não se metia comigo, não, mas como sou serralheiro, ora toma! Ficas sem carro que é para aprenderes!
- Mas onde é que estava o carro?
- Em frente do café, onde é que havia de estar? Era só um minuto! Mas nããão, tinha de aparecer logo uma fulana, que devia era estar em casa a coser meias, a querer tirar o carro dela. A tipa não sabia perguntar de quem era o carro, não, teve de se pôr logo a telefonar para a polícia... Mulheres ao volante, dá nisto! Devia ser proibido!
Marco Paulo viu ali uma boa oportunidade de pôr os seus conhecimentos recém-adquiridos em prática:
- Mas, ó pai... – começou de mansinho, não fosse a aventura dar para o torto e levar um par de estalos, como era hábito. – se o carro estava mal estacionado...
- Eu sei que estava mal!!! – vociferou o senhor Silva. – Mas era só um café...! Se não tivesse aparecido o compadre Jacinto a provocar-me por causa do Benfica... Eu tive de lhe dizer umas boas, não ia ficar calado! Filho da p*** do chui!
- Sim, mas... o código, quero dizer, tem aqui uma regra...
- Qual código, porra?! Isso que estás a estudar, já eu fiz e já me esqueci! Não venhas agora dar-me lições, rapazinho, que quem te paga os estudos sou eu!
- Mas aqui diz que não se pode estacionar em segunda fil.. – disse o filho já com a voz a esvair-se-lhe, apontando nervoso para o livro.
- Some-te daqui, patife, nem pareces meu filho! Some-te, senão eu racho-te a cabeça!
Marco Paulo sumiu-se para dentro do quarto e trancou a porta à chave. Na cozinha, o tilintar da louça tinha dado lugar a uma ladainha de rezas aflitas. José Silva andava agora na sala de um lado para outro, de punhos cerrados, a remoer os azares da vida:
- Só a mim! Isto só a mim!... Regras, quais regras?! Nesta terra, só os tolos cumprem regras! Havia de ser eu, hã?!

2 Comments:

At 1:06 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Pobre Marco Paulo e pobre Portugal...Foi uma excelente pausa com leitura. Um cais a revisitar. Boa tarde.:)

 
At 3:55 da manhã, Blogger lena b said...

Obrigada por terem passado por cá.
Na verdade, devo a uma turma que tenho este ano a motivação para escrever este mini-conto. (É uma daquelas turmas terríveis.) Precisava de os obrigar a pensar a sério na questão das regras a cumprir para quem vive em sociedade e lembrei-me de escrever isto. Depois coloquei uma versão reduzida num teste para eles escreverem um texto de opinião. Por acaso, tive surpresas. Em 25 alunos, só 2 não perceberam mesmo onde eu quis chegar e deram razão ao sr. Zé Silva, outros dois deram respostas ambíguas e o resto condenou a atitude do nosso português típico... (pena que tenha sido só no teste...).

 

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