terça-feira, maio 02, 2006

Ay que ganas!

Em 30 de Abril de 2006 Espanha resolveu encerrar a central nuclear José Cabrera, situada próximo de Guadalajara, dois anos antes do previsto. Apesar das garantias da empresa proprietária, de que a central estava em perfeitas condições de cumprir o seu ciclo de vida de 40 anos, esta feliz decisão do governo espanhol, tomada na sequência de vários apelos de organizações ambientalistas, merece bem ser considerada um marco a registar. Em sua substituição, surgirá uma central eléctrica clássica, com capacidade de produzir energia com potência cinco vezes superior. Este caso, que tem todos os requisitos para se tornar paradigmático, mostra bem que a economia só “perde” se optar por alternativas menos perigosas se os empresários quiserem e que a opção pelo nuclear está bem longe de ser a única fonte “barata” de energia. No Japão, por exemplo, um dos países com mais centrais nucleares por quilómetro quadrado (em 1995 tinha 50 reactores a funcionar e 4 em construção), a corrida à indústria nuclear fez cair por terra o projecto do “Reactor Térmico Avançado”, em virtude do excesso de dívidas nas empresas de electricidade pelos investimentos anteriores. Além disso, só a política de ocultamento de informação sobre danos com acidentes, que tem sido seguida um pouco por todo o lado, pode dar a falsa sensação de segurança quanto ao funcionamento dessas centrais, que não estão imunes a erros humanos. (Ver rodapé) Ainda no Japão, em Dezembro de 1995, à semelhança do ocorrido em Chernobyl, a tentativa de minorar as consequências do acidente no reactor de Moju, fez com que ao local acorressem bombeiros sem saberem que precauções tomar, pois não foram informados de que havia libertação de radioactividade. Alegam-se “razões de segurança”, para essa falta de informação, esquecendo que se poderiam minorar os danos humanos se as populações das áreas afectadas fossem avisadas a tempo de se protegerem, bem como os bombeiros e restante pessoal chamado a intervir. Mas se olharmos para a já preocupante lista de acidentes em centrais nucleares, com consequências graves e, nalguns casos, catastróficas, desde a década de 50 até hoje, é caso para nos perguntarmos: segurança para quem? Mesmo que não aconteçam acidentes, o Urânio dos reactores nucleares gasta-se e em três anos desaparece em cerca de 75%, produzindo derivados da fissão, tais como o Estrôncio-90 e o Césio-137, o Plutónio e o Neptúnio, considerados “lixo atómico” e guardados durante longos anos em contentores selados, ou aproveitados para a indústria de armamento. Outros resíduos são simplesmente lançados na atmosfera e nos rios.
Com tudo isto, não se percebe onde o empresário português Patrick Monteiro de Barros foi buscar a ideia de que “O nuclear produz energia mais barata, mais segura e mais limpa”, como afirmou, em Fevereiro deste ano. Mas talvez se faça alguma luz, se compararmos este argumento com a declaração de um ex-Ministro da indústria, Walter Rosa, em 1977, a propósito do projecto de uma central nuclear a ser construída em Ferrel - Peniche: «O acidente máximo, cujas probabilidades são extremamente remotas, que seria por exemplo a fusão do núcleo de um reactor, pode aumentar cinco miliramos, salvo erro, a dose recebida pelos operadores da central, que de maneira nenhuma é mortal nem nada que se pareça. Portanto, as condições de garantia das centrais nucleares são extraordinárias. Ver a televisão traz um aumento de radiação numa sala idêntico àquele que tem uma central nuclear na sua vizinhança. E todavia não tem medo da televisão, pois não?». Em 1977 ainda não tinha acontecido o desastre de Chernobyl e Portugal acabava de sair de um isolamento de 40 anos, no qual a falta de informação sobre o que se passara no estrangeiro permitia essa ilusão optimista. Mas agora já não se justificam esses entusiasmos, nem a ignorância em que se fundamentam, a não ser que, desde então, Patrick Monteiro tenha estado emigrado em Marte, sem jornais, televisão ou telemóvel...
Este empresário de discurso surrealista está tão empenhado em desenvolver um projecto de uma central nuclear neste nosso rectângulo à beira-mar plantado, que o defende com argumentos tão inacreditáveis como o de que a construção de uma central permitiria a Portugal respeitar o Protocolo de Kyoto, ignorando, ou fingindo ignorar, que só essa construção, que levaria uma década a ser concluída, libertaria para a atmosfera grandes quantidades de CO2. Outro argumento aberrante é o de que “o grau de desenvolvimento social de um país mede-se no consumo de energia por habitante.” E eu a pensar que eram o civismo e o respeito pelo ambiente os grandes indicadores de civilização e progresso!
Quanto às reacções da ordem dos Engenheiros e do Governo português, ficam a milhas da atitude sensata do Governo espanhol: nem apoiam, nem deixam de apoiar. José Sócrates não se compromete, mas mostra-se aberto à discussão. Não sabemos o que isso significa...Em declarações à TSF, em 22 de Fevereiro, por sua vez, Fernando Santo, bastonário da Ordem dos Engenheiros, além de criticar a oposição dos ambientalistas, afirmou “A Ordem não quer com isto tomar uma posição a favor ou contra, não tem que o fazer, tem de dar o contributo sobre este tema.”. Ficamos a imaginar qual será o contributo...
Um dia destes, somos todos surpreendidos com o início da contrução da central nuclear – talvez ali para os lados de Ferrel, restaurando o antigo projecto que um levantamento popular fez abortar. Mas nessa altura estávamos ainda no calor da revolução dos cravos... A provar que, desta vez, o panorama poderá ser diferente, há o silêncio da opinião pública e a falta de informação concreta sobre o conteúdo do debate na ordem dos Engenheiros. A determinação de P. Monteiro indicia que a ideia continua a mover-se. E como quem nos governa parece preferir meter a cabeça na areia, em vez de tomar posição, foi por isso que eu, neste Domingo, tive vontade de ser espanhola. Ay que ganas!...

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1957 – Em Liverpool, escapa radioactividade de uma central, mas só em 1983 o governo britânico admite que 39 pessoas morreram de cancro em virtude do acidente.
- No mesmo ano, liberta-se radioactividade da central russa de Tcheliabinski, contaminando 270 mil pessoas. O superaquecimento de um tanque para resíduos nucleares causa uma explosão que liberta compostos radioactivos numa área de 23 mil km2, riscando do mapa mais de 30 pequenas comunidades numa área de 1.200km2.
1961 – Três operadores de um reactor experimental nos EUA morrem devido à radiação.
1966 – Derrete parcialmente o reactor de uma central em Detroit.
1969 – Na Suíça, o mau funcionamento do refrigerante usado num reactor experimental obriga a lacrar a caverna onde este se encontrava.
1975 – Um incêndio numa central do Alabama faz baixar, perigosamente, o nível de água do reactor.
1979 – Na central americana de Three Mile Island, EUA, derrete parte do núcleo do reactor.
1981 – Oito trabalhadores americanos são contaminados quando cerca de 100 mil galões de refrigerante radioactivo vazam de um prédio de armazenamento do produto.
1986 – Um cilindro de material nuclear queima, após ter sido inadvertidamente aquecido numa fábrica de Oklahoma, EUA. Em Abril, ocorre o maior acidente nuclear da história, em Chernobyl, com a explosão de um reactor, provocando entre 7 a 10 mil mortes a longo prazo, que se somam às 31 registadas na altura, e obrigando à evacuação de 135 mil pessoas.
1987 – A violação de uma cápsula de césio-137 por sucateiros, no Brasil, mata 4 pessoas e contamina 249.
1992 – Um relatório russo informa que 8.015 pessoas já haviam morrido na sequência dos efeitos do acidente de 1957 em Tcheliabinski.
1996 – Um vazamento de material radioactivo na Argentina contamina o sistema de água potável da central.
1997 – Uma explosão na central de Moju, Japão, afecta directamente 57 pessoas e obriga à evacuação de 320 mil num raio de 10 Km, por 24 horas.
- No mesmo ano, uma explosão num depósito da Unidade de Processamento de Plutónio da Reserva Nuclear Hanford, EUA, liberta radioactividade para a atmosfera.

7 Comments:

At 8:39 da manhã, Anonymous Anónimo said...

MUITO OBRIGADA por este magnífico post!
Eu estive em Ferrel e voltarei a estar onde for necessário; o problema é que sozinha não posso nada e as multidões de antanho estão prostradas frente à tv dos seus umbigos.
Como dizia não sei quem: Pior que não estar informado é julgar-se informado...
Maria Laura

 
At 1:09 da tarde, Blogger nnannarella said...

Brilhante a síntese crítica que fazes de todo este problema, recuando até 77.
Estamos (cada vez mais)entregues aos bicharões, que não olham a meios... E ler-te também me lembrou de estar mais atenta.

 
At 2:36 da manhã, Blogger lena b said...

Obrigada pelos comentários.
Mas não descansemos. Patrick Monteiro continua a sua pressão para que se contrua a central nuclear (agora que o projecto da refinaria foi à vida...). E vai ganhando adeptos, com o argumento de que a nossa proximidade de Espanha - e das suas centrais - não nos livra de problemas. Assim sendo, na lógica deste senhor, mais vale termos por cá uma central, porque, se houver problemas com as espanholas, sofremos na mesma os seus efeitos sem termos tido os benefícios. Mas ele não afirmava que era "seguro"?!
Como se vê, para Patrick Monteiro qualquer argumento serve - mesmo que se contradiga - para levar a sua avante...

Lena b

 
At 6:20 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Eu leio-te bastante embora às vezes ache que já disseste tudo e nem sei o que te diga..:)Achei uma excelente escolha para um roteiro informativo que não se Vê nos telejornais! Continua!

 
At 4:03 da manhã, Blogger lena b said...

Couvinha e Sulamita:

Obrigada pelos comentários. Eu não sou jornalista. As minhas fontes de informação preferenciais são o Courrier Internacional, alguns jornais portugueses, algumas ONGs e a internet. O que eu faço é simples: agarro em temas que mexem comigo, faço umas pesquisas, ando a remoer o assunto durante algum tempo e depois escrevo. Gostava de ter disponibilidade para colocar aqui posts mais assiduamente, mas é o que se pode ir fazendo... ;)

 
At 7:06 da tarde, Anonymous Anónimo said...

A lista de acidentes não é tão catastrófica como parece à primeira vista. Todas as grandes construções humanas têm vítimas: pontes, catedrais, estádios, arranha-céus... Tendo em conta o número de pessoas envolvido e o número de centrais a funcionar, o risco é estatisticamente irrelevante. O automóvel, por exemplo, tem morto muitíssimo mais gente em todo o mundo e, nem por isso se põe a hipótese de o dispensarmos. A única questão que se coloca é como é que o automóvel se pode tornar menos mortífero. Em todos os grandes empreendimentos, quanto maior o acidente, menor o risco. Podemos imaginar, numa grande central nuclear, um acidente global como o de Chernobil, que é improvável, mas o improvável pode acontecer e aconteceu. O homem aprende com os acontecimentos e a sua probabilidade diminui.
Se, evidentemente se comprova que o nuclear é mais caro, o que não me parece ser o caso, é claro que o nuclear deixa de ser interessante. Uma central térmica não nuclear tem, segundo sei, um efeito de estufa, muito mais nefasto.
Se eu tivesse uma opinião formada contra o nuclear, expunha-a aqui. Considero-o apenas como uma alternativa energética que tem de ser ponderada, com todos os custos, riscos e benefícios.

 
At 3:48 da manhã, Blogger lena b said...

Luís:

Parece-te comparativamente irrisória, com outro tipo de acidentes, uma fuga de material radioactivo que contamina solos e lençóis de água durante décadas, provocando, a médio e longo prazo doenças cancerígenas em várias gerações? O cancro da tiróide, por exemplo, está directamente relacionado com a exposição à radioactividade. Viste uma reportagem que deu há umas semanas, na SIC (salvo erro) sobre "As crianças de Chernobyl". A lista que coloquei aqui é um resumo e, como sabemos, há muitos acidentes em centrais que, por não serem tão "espectaculares" como o de Chernobyl, são abafados, em nome de uma pretensa "segurança". Viste bem o relatório dos efeitos a longo prazo?

 

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