sexta-feira, dezembro 01, 2006

Linguistas de Bancada

Como se não bastasse a quantidade de "árbitros" que brotam, por geração espontânea, durante qualquer campeonato de futebol, agora também temos uma explosão demográfica de linguistas improvisados, a discutir a legitimidade da aplicação da TLEBS. Creio que nunca uma questão científica e pedagógica terá sido, nos últimos anos, discutida com tão grande entusiasmo clubístico como esta, nos nossos órgãos de comunicação social. E tem dado origem a verdadeiras "revelações". Descobrimos, por exemplo, que tanto Miguel de Sousa Tavares como o Ricardo Araújo Pereira, dos "Gato Fedorento" têm uma vocação secreta para a investigação linguística. E o facto de esta polémica ter tomado as proporções que está a tomar é também revelador do universo surrealista em que estamos mergulhados. Primeiro, porque, para ser levada a sério, teria de ter começado há dois anos e não apenas agora. Segundo, porque me parece que, subitamente, toda a gente se transformou em linguista. Terceiro, porque, à medida que vou lendo os artigos desses "linguistas de bancada", cada vez me convenço mais de que querem transformar um assunto científico num problema político. E o pior é que estão a conseguir, pois a Ministra da Educação já afirmou recentemente, numa entrevista, que as reclamações deviam ser endereçadas ao anterior Governo, que tinha publicado o Decreto...
Mas agora a gramática também está ao serviço da oposição?!

As questões linguísticas levantadas pela TLEBS só são novidade na sua aplicação aos programas dos ensinos básico e secundário. De resto, trata-se do culminar de um trabalho de investigação iniciado há mais de 15 anos e que ainda se encontra em curso (alguma da nomenclatura está ainda em fase de aperfeiçoamento, bem como a base de dados que os autores divulgaram). É óbvio que qualquer professor que tenha feito a licenciatura numa das variantes de Línguas e Literaturas Modernas já teve contacto com a Linguística Descritiva durante a sua formação e estará, por isso, mais à vontade para compreender o alcance da TLEBS. A resistência vem, sobretudo, daqueles cuja formação académica não contemplou esse tipo de estudo. No meu caso pessoal, a dificuldade que senti, nos primeiros anos de leccionação, residiu precisamente no facto de ter aprendido, durante a minha formação académica, um tipo de análise linguística que não podia aplicar na prática lectiva, por estar desfasada dos programas curriculares do básico e secundário, que privilegiavam a gramática tradicional e normativa. Ora, se a língua é, pela sua natureza, um sistema dinâmico, a gramática tradicional e normativa depressa se torna obsoleta e incapaz de dar conta de todos os fenómenos que nela ocorrem. Daí a legitimidade da linguística descritiva.

O que mais me espanta é o facto de ser precisamente um assunto em que a investigação universitária se aproxima da realidade quotidiana dos falantes que serve de rastilho a toda esta polémica. Mais: são os mesmos que bradam contra o desfasamento entre o saber académico e a vida real que clamam, agora, contra a aplicação prática do resultado da investigação linguística ao discurso quotidiano dos falantes (e não apenas aos exemplos colhidos da literatura). E com argumentos do mais disparatado que se pode imaginar, como o de que, supostamente, se quer obrigar as "pobres crianças" a decorar todas as classificações dos nomes, etc, etc, como se a linguística descritiva usasse os mesmos métodos de "análise" da gramática normativa, ou como se os métodos pedagógicos de hoje fossem os mesmos de há 50 anos!

Será que Vasco Graça Moura, Helena Matos, Miguel Sousa Tavares, entre outros, também se vão dar ao trabalho de escrutinar os programas de Matemática, Ciências Físico-Químicas ou de Biologia e bradar contra a "tortura" que é ensinar às "pobres crianças" aqueles nomes científicos "rebarbativos" que lá encontramos?

Para uma visão panorâmica deste assunto, ver em:

http://ciberduvidas.sapo.pt/controversias/311006_22.html

6 Comments:

At 11:07 da tarde, Blogger nnannarella said...

___________________

Brilhante, brilhando sempre.


Sabes... eu passo um pouco ao largo destas discussões, mais efémeras do que o que já o é ... E como estou a pensar mudar de vida... não vou perder muito tempo a discutir o que, parece, tenho mesmo de aprender se não mudar de vida.:)

O que sinto é que como não há emprego para tantos intelectualóides, metem-nos a fazer altissonantes reformas "para ficar tudo na mesma". Ou seja: muda-se a treta da terminologia, não sei bem para quê, e continua a não se "exigir" que os profs de outras áreas bem falem, escrevam e corrijam o Português; e continuam-se a passar alunos, com esta e aquela alínea, que não conseguem construir duas frases seguidas com sentido.
O nosso trabalho continuará sempre inglório.

Quanto aos gatos fedorentos e aos sousa tavares e quejandos ... mas, como poderiam ser "bons profissionais", se não fossem buscar stes "temas escaldantes" ?

Opinon makers ... Ninguém fala desta não tão novíssima profissão... Dar palpites por tudo e por nada, até por dá cá aquela palha, apenas com uma pálida ideia da versão do mundo sobre a qual opinam.

É a pressa, minha amiga, é a pressa. De tudo. Em tudo. Até de não deixar cair a batata quente ... :)


Desculpa se também fui um tanto fedorenta de tavares e quejandos...:)
Obrigada por seres tão generosa.
Beijinhos.

 
At 11:32 da tarde, Blogger lena b said...

Olá nnannarella:

Bem vinda por aqui de novo.
Sabes? Eu nesta questão da terminologia até estou de acordo com a mudança, porque não a vejo apenas como uma mera operação cosmética do tipo "o que era X agora passa a denominar-se Y". Uma vez que essa terminologia decorre da Linguística descritiva, e não da gramática normativa, ela implicará, necessariamente, uma nova abordagem do estudo da língua que conduz mais à compreensão efectiva dos fenómenos que nela ocorrem do que ao simples "empinanço" de designações mais ou menos avulsas. Se todos compreenderem isso (professores incluidos) talvez a longo prazo se notem algumas alterações positivas no modo de escrever, pois compreender os fenómenos é sempre mais produtivo do que simplesmente decorar, despejar e esquecer em seguida...

Quanto aos "opinion makers", o problema é passar-se a vida a explicar aos alunos que uma argumentação tem de ser bem fundamentada, para depois eles verem na televisão uns tipos a "mandar umas bocas" e ainda por cima a serem pagos para isso...


Beijinhos ;)

 
At 8:54 da tarde, Anonymous Anónimo said...

A lena anda distraída, caso contrário teria já lido artigos/entrevistas bem fundamentados, sobre os efeitos perniciosos previsíveis na aplicação desta Terminologia Linguística aos Ensinos Básico e Secundário. Que a Lena a tenha aprendido na faculdade (como eu, de resto)e que se valha desse conhecimento para ensinar a gramática, nas suas várias vertentes, aos seus alunos, tudo bem. O que está em causa, como toda a gente sabe, é a aplicação da TLEBS, "tout court", a crianças e adolescentes.
Quando somos tão ciosos do que sabemos que "temos" de passar o nosso "show" de qualquer modo, devemos cuidar melhor da Língua e não trocar, por exemplo, espontâneos por «expontâneos». É que os «seus expontâneos» pura e simplesmente não existem, porque a Língua não os reconhece.

 
At 5:33 da tarde, Blogger lena b said...

mp:

Obrigada pelo reparo. A hora tardia a que escrevi o texto levou-me a cometer uma ou outra gralha que, de resto, já corrigi como é o meu hábito sempre que, em leituras posteriores do que escrevo aqui, detecto alguma falha. Havia mais além dessa que assinalou. É raro escrever os "posts" no word. Daí que tenha necessidade, de vez em quando, de rever e corrigir o texto nos dias posteriores à sua publicação. Mas não se preocupe que os meus alunos não o leram. ;)

Quanto ao que diz sobre a TLEBS, em nenhum lado está escrito que ela deva ser aplicada "tout court", como diz. Nem o CD da base de dados nem o decreto contêm instruções pedagógicas. Cabe, por isso, aos professores gerir as informações e adaptá-las aos níveis que estão a leccionar, em função da capacidade dos alunos e dos programas curriculares. É necessário distinguir os vários níveis de análise a que essa terminologia se aplica e não obrigar as crianças e adolescentes a decorar, simplesmente, todas as classificações disponíveis para os nomes, advérbios, etc, ou misturar no mesmo exercício a análise semântica e sintáctica, por exemplo. Entender a TLEBS como uma lista taxonómica a "empinar" é que é pernicioso, de facto. Se pensar bem, já há muito tempo que o estudo da gramática se deixou de exercícios do tipo recitativo para passar a ser uma reflexão sobre a língua. Compreender é sempre mais útil do que "cantarolar" listas de nomes concretos ou abstractos, conjunções, pronomes ou flexões verbais. Se consultar a base de dados juntamente com a "Gramática descritiva da Língua Portuguesa" da Maria Helena Mira Mateus et alii, verá que muitas dúvidas se esclarecem quanto à aplicabilidade da TLEBS e quanto aos níveis de análise linguística que esta permite. De resto, com certeza concordará comigo que a língua é um sistema dinâmico e que a gramática tradicional e normativa já não consegue dar conta de todos os fenómenos que nela ocorrem e que esses fenómenos não são observáveis apenas por linguistas, mas fazem parte do discurso quotidiano de qualquer falante, não é?

 
At 5:49 da tarde, Blogger lena b said...

Quanto à hipotética "distracção" de que me acusa, cumpre-me esclarecê-la de que, antes de escrever o "post" li todos os textos que foram publicados no "Ciberdúvidas" sobre este assunto. Além disso, há dois anos para cá tenho conversado com colegas e consultado as gramáticas que, entretanto, saíram. A minha primeira reacção ao decreto sobre a TLEBS foi, como para muita gente, de perplexidade. Entretanto fui pensando e compreendendo o que está realmente em causa. Como vê, não tive nenhuma pressa em fazer "show" sobre este assunto sem ter as ideias arrumadas. O mesmo talvez não se passe com certos comentadores que se descobriram agora linguistas...

 
At 6:00 da tarde, Blogger lena b said...

Também há textos bem fundamentados a defender a utilização da TLEBS, e a demonstrar o efeito pernicioso de certos comentários apressados e empolados que têm vindo a lume na comunicação social, como se pode verificar neste exemplo, tirado do debate em curso no "Ciberdúvidas":

João Costa **

Tornou-se moda, nas últimas semanas, comentar a Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS). Aderiu a essa moda Helena Matos, na edição do Público do último Sábado, contribuindo, a par de outros comentadores, para mais uma onda de desinformação a este respeito.
Julgava eu que um comentador faria um esforço por se informar previamente sobre o assunto sobre o qual escreve. Aparentemente, não é esse o caso. Se assim fosse, não seriam tantos os artigos de opinião que abundam em falta de informação. Deixo aqui alguns esclarecimentos cruciais sobre a TLEBS que podem mostrar como Helena Matos, entre outros, escreveu sem fazer o seu “trabalho de casa”.
1. A TLEBS é um documento que substitui a Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967. É apenas isso e não um manual de gramática ou um documento que revogue os programas em vigor. Assim, o que é ensinado nas escolas depende dos programas e do Currículo Nacional (CNEB, DEB: 2001) e não da TLEBS. Não havendo alteração destes documentos, não há alteração do peso relativo da gramática nos programas, nem dos conteúdos a ser leccionados, nem transformação das aulas de português em cursos de linguística.
2. A TLEBS introduz termos relevantes para fazer distinções cruciais para uma boa descrição do funcionamento da língua portuguesa. Entendê-los implica o seu estudo e não apenas critérios (pseudo-)estéticos sobre se são palavras bonitas ou feias. Muitas das subclassificações feitas são para esclarecimento dos docentes, por exemplo, para a escolha de exemplos a seleccionar para o ensino das distinções previstas nos programas.
3. Ensinar gramática não é ensinar listas de termos ou definições, mas pôr o conhecimento da gramática ao serviço da explicitação do funcionamento da língua e do desenvolvimento de competências de leitura, escrita e oralidade.
4. Alguns dos termos que têm sido dados como exemplo do que vai ser ensinado nem sequer ocorrem na TLEBS (veja-se o citadíssimo "advérbio disjunto restritivo do valor de verdade da asserção", que não aparece nem no documento, nem na base de dados que lhe serve de apoio). Isto mostra que estes comentadores têm tentado construir uma opinião pública limitando-se a citar-se uns aos outros.
5. A gramática chomskyana é de natureza transformacional e derivacional. O que se fez nos anos 80 (contra a opinião da comunidade linguística) foi análise estruturalista de frases. Como já tive oportunidade de escrever noutro contexto, convém haver alguma informação sobre o trabalho que os linguistas fazem antes de afirmar que este tem sido transposto directamente para o ensino.

Helena Matos tece um comentário bizarro sobre a evolução do ensino do português. Análises das práticas docentes e dos resultados dos exames têm revelado que, das áreas a ser trabalhadas nesta disciplina, duas têm sido praticamente ignoradas: a gramática e a oralidade. Isto é patente na inexistência de cultura geral sobre o funcionamento da língua (quantos portugueses, à saída do 9º ano, distinguem sem hesitar um adjectivo de um advérbio?) e nas fracas capacidades de grande parte dos adultos em fazer uma exposição oral formal. Mas Helena Matos afirma que a oralidade tem sido privilegiada!
Introduzir a propósito da TLEBS o debate sobre o peso relativo da literatura face a outras tipologias textuais é, mais uma vez, baralhar e desinformar. O trabalho em gramática pode ser feito com base em diferentes tipos de textos, pelo que a questão das tipologias é independente desta. Contudo, como a referência ao regulamento de concursos televisivos mostra, Helena Matos confunde, de novo, programas, manuais e textos de opinião.
Ser comentador num jornal devia ser uma tarefa nobre e responsável (era assim no tempo de alguns dos nossos grandes autores). Arriscamo-nos a que a polémica em torno da TLEBS contribua apenas para perpetuar o estado do ensino do português dos últimos 30 anos, em que a gramática tem sido deixada de parte, com consequências óbvias, como o péssimo domínio da pontuação (por exemplo, em textos de crítica à TLEBS). Não sei a quem interessa vender, de forma irresponsável, a ideia alarmista de que a TLEBS é para ser ensinada como uma lista de termos ou definições descontextualizada dos programas; contudo, como sou optimista, quero crer que alguns comentadores o fazem apenas por uma razão: desinformação."

 

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