segunda-feira, março 26, 2007

Venham as pipocas!

"É só um concurso", dizia-se há pouco, na RTP, como que a buscar um parco consolo para o resultado final das votações dos telespectadores que, entre dez personalidades históricas, elegeram António Oliveira Salazar como "O Melhor Português de Sempre". Isto significa que 41% dos votantes de um concurso que "nunca poderia ter existido há 50 anos", como bem lembrou a apresentadora, consideraram, no pleno uso da sua liberdade de opinião, como "o melhor português de todos os tempos" a pessoa que mais se opôs, no seu exercício do poder, ao uso dessa liberdade… Fantástico! Como explicar isto? Será uma dessas homenagens póstumas, em que o nosso país se prodigaliza tantas vezes, do tipo "agora que ele já não está cá podemos dar-lhe esse gostinho"? Será saudade do antigamente, dos gloriosos tempos da PIDE, da sardinha para seis, do "Deus – Pátria – Família", do Cardeal Cerejeira, da Guerra Colonial, da fronteira passada "a salto" para não morrer à míngua?
Ou será amnésia disto tudo?
Mas como esquecer os atavismos enraizados anos a fio na memória colectiva que, ainda hoje, se reflectem numa grande maioria dos comportamentos sociais e dos programas políticos? Como esquecer a pobreza do antigamente, se hoje se assistem a despedimentos de centenas de pessoas por falências, no mínimo duvidosas, de dezenas de fábricas no interior e "deslocalização" de outras para onde a mão-de-obra é ainda mais barata (apesar de um dos nossos ministros pensar que Portugal pode competir com a China nesse domínio...)? Como esquecer o abandono das populações, quando uma das grandes "conquistas" dos sucessivos governos democráticos actuais tem sido o fecho de escolas, de maternidades e de urgências hospitalares que não se revelem economicamente "produtivas", bem como o desinvestimento nas políticas sociais a pretexto da "contenção do défice"? Como esquecer as assimetrias sociais do antigamente, se hoje mais de metade da população não consegue pagar os medicamentos que tem de tomar nem a educação dos filhos, enquanto uma minoria faz as delícias dos construtores civis de condomínios privados de luxo e das clínicas de lipoaspiração? Como esquecer a alienação colectiva do passado, quando no presente a "cultura popular" se resume, quase só, ao futebol, a reality-shows, à música-pimba e aos mexericos telenovelescos em torno de figuras públicas reais ou fictícias? Como esquecer os abusos de poder de antes, se agora deparamos com políticos arrogantes e autistas (e que às vezes até engordam as suas contas pessoais "ao serviço do país")? Como esquecer esse passado, se ele está colado a nós, a amarfanhar-nos, votando-nos a um constante desalento, desconfiança e falta de iniciativa?
Mas, então, nada mudou? Claro que mudou! Alguns fizeram a sua fortuna "a pulso" graças aos subsídios comunitários da UE, ou de outras "manobras" legítimas ou não. Já é possível, a outros, viajar para um paraíso turístico como se vê nos filmes, nem que tenham de ficar a pagar o crédito durante anos. As pessoas divertem-se mais hoje do que no tempo da ditadura, é verdade. Divertem-se, sobretudo… E exprimem livremente a sua divertida opinião, sem temer represálias. A prova disso é que votaram em Salazar!
Mesmo que tenha sido apenas um concurso televisivo, pela participação que teve, o seu resultado final não deixa de ser sintomático do país que não conseguimos construir nestes trinta e três anos de democracia: um país civilizado, culto, de cidadãos responsáveis. E essa ausência está bem visível na descrição que faz José Gil do Portugal - Presente, no livro publicado há dois anos: "…o direito à cultura e ao conhecimento ainda não chegou ao sentimento da população portuguesa. […] Porquê? Porque o 25 de Abril não conseguiu abolir a divisão instruído/pobreza-ignorância do tempo do salazarismo. Porque na sociedade portuguesa actual, o medo, a reverência, o respeito temeroso, a passividade perante as instituições e os homens supostos deterem e dispensarem o poder-saber não foram ainda quebrados por novas forças de expressão de liberdade. […] Vivemos numa sociedade sem espírito crítico – que só nasce quando o interesse da comunidade prevalece sobre o dos grupos e das pessoas privadas." (in: Portugal, Hoje – O medo de Existir).
Afinal, lá no fundo, que diferença existe entre este Portugal de hoje e o Portugal do "Tempo de solidão e de incerteza / Tempo de medo e tempo de traição / Tempo de injustiça e de vileza / Tempo de negação // Tempo de covardia e tempo de ira / Tempo de mascarada e mentira" que Sophia de Mello Breyner Andresen lamentava, em 1962, no seu Livro sexto?
Em democracia vence a maioria. E como, dessa maioria, uns divertem-se e outros esperam divertir-se, um dia pode ser que assistamos a uma sequela do antigo regime em versão hollywoodesca. Quem sabe, se esse "filme" não estará já a ser rodado? Venham as pipocas!

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